Dos sentimentos ambíguos vividos pelo ser humano, poucos são tão excitantes quanto a vingança. A vingança reina entre os personagens da literatura, do teatro, do cinema e a ambiguidade desse sentimento transita no indefinido: entre o herói e o vilão, entre o bem e o mal; a vingança encontra-se nos mitos religiosos, nas feitiçarias, no divino, no demoníaco e, por fim, na elaboração das leis. Há na vingança, como na lei de talião, um desejo de dar uma resposta pessoal ao malfeitor. Aliás, quando pactuada socialmente, o êxtase da vingança se enfraquece e a ambiguidade dos vingadores tende a desaparecer, como num linchamento, em que culpa, o ressentimento ou o remorso se dissolvem na contingência. Vingar-se é um ato solitário.
Há quem despeje sua vingança nas suas criações. A Divina Comédia não existiria sem o desejo de vingança de Dante ao atirar seus inimigos ao inferno ou ao purgatório; não existiria Moby Dick sem a obstinação de Acab em perseguir a monstruosa baleia - a outra face do Leviatã; não haveria Hamlet se não houvesse o desejo de honrar a alma do pai, vingando-se do tio. Nesses personagens, apesar do desejo de vingança motivar os seus atos e trazer-lhe alguma satisfação, em um ou outro momento, a vingança é geradora de conflitos psíquicos, especialmente após o êxito do vingador. O vingador é, aliás, um ressentido solitário, condenado a experienciar o remorso.
E isso fica claro na leitura dO Conde de Monte Cristo de Dumas - uma espécie de manual romanceado da psicologia da vingança. Neste clássico da literatura do século XIX, o desejo de vingança do personagem principal, Edmond Dantès, inicia com as injustiças a que foi submetido em sua juventude que o levaram a longos anos de prisão. Dado como morto, Dantés, ou o Conde de Monte Cristo, reaparece anos depois sem ser reconhecido pelos seus desafetos, com os quais passa conviver socialmente. Paulatinamente, uma ardilosa trama de vingança começa a ser desenhada e realizada - acredito que todos os leitores já me permitem dar o spoiler. A vingança se estabelece da maneira mais cruel e elegante. Monte Cristo sai vitorioso, triunfa. Por trás, contudo, da honra lavada nesse triunfo - também partilhado pelo leitor - Dantès, mais uma vez surpreende a todos ao ser tomado por um súbito e profundo sentimento de vazio e de apatia. Sobra-lhe, ao cumprimento de seus revides, remorso e sentimentos melancólicos - parece-me que a melancolia ladeia a vingança.
Monte Cristo, depois de ter perdido parte de sua vida na prisão, passa a outra parte, talvez a maior de sua existência tentando retificá-la na vingança. Congelou seus afetos no tempo em que foi injustiçado, carregou-se de ódio. A melancolia se estabelece após constatar que o plano de vingança era o seu sustento, que reavivou seus antigos fantasmas, mantendo crescente o seu sofrimento - o ódio foi por muito tempo sua forma de existir. Durante a prisão, ouviu de outro prisioneiro, o abade Faria, louco e mentor de sua sabedoria: “não cometa o crime pelo qual você está cumprindo a pena. Deus disse, ‘A vingança é minha’”. Monte Cristo desconsidera.
Vingando-se de seus eternos inimigos, Dantès cai no vazio de suas errâncias. Questiona o sentido da vida - uma vida ocupada por represálias, revides que não saldam as dívidas dos seus inimigos, tampouco lhe devolve a alegria ou alivia sua amargura.
Dantès embarca sem destino certo e, na miragem do horizonte, mar adentro, assim como fez Medeia de Eurípides, que vingou o marido assassinando os filhos, parte em direção ao sol e desaparece.
Marcos Creder
Um comentário:
Parabéns, dr. Marcos! Uma análise excelente do vingador sombrio: "Perdão, senhora. Não como jamais uvas moscatel."
Nesta frase, que nunca saiu da minha cabeça, está concentrada toda a altivez de sua vingança.
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