domingo, 1 de novembro de 2015

A índole instintiva

No passado se recomendava ler os clássicos. Hoje recomenda-se também assistir aos clássicos, pois o cinema, de certo modo, ganhou mesma importância que a literatura no cenário cultural. Assim como tem livros bons e ruins, existem  um número restrito de filmes e um sem número de filmes imprestáveis. O cinema tem uma vantagem perante a literatura. A imagem por si só é sedutora. As palavras escritas exigem  concentração, mesmo as mais encantadoras. As redes sociais fazem sedução transformando palavras, com todas as letras em imagens. O cinema que sai da literatura às vezes frustra e os livros que se basearam em roteiros de cinemas se  saem pior ainda. O cinema e a literatura se dialogam, mas se distanciam no universo de cada um. A arte está nas suas singularidades.

Li no passado um desses clássicos hoje esquecido, mas que certamente, algum dia voltará a entrar na moda. Na verdade já fizeram, inclusive, um filme clássico baseado em obra do mesmo autor – Joseph Conrad. Apocalise Now foi inspirado em partes por Coração das Trevas. Mas o clássico de Conrad, em minha opinião é o romance "Lord Jim" – um romance que tem uma história instigante. Jim faz parte tripulação de um navio que sofre uma avaria e entra em processo de naufrágio. Ao constatar a tragédia que iria ocorrer,  Jim sabendo que se avisasse ao restante da tripulação do ocorrido, todos, no pânico, morreriam. Resolve abandonar na surdina. O navio, contudo, não afunda. Jim, então, é afastado do trabalho e em seguida julgado e pela marinha britânica. O livro todo é a narrativa do personagem sobre questões éticas, culpas morais e a tentativa de  fugir da marca indelével desse marco autobiográfico.   Quais as questões que fazem Jim, um homem até então com história de vida honrada se revelar num acontecimento dessa natureza?

A história de Lord Jim se repete  e se atualiza no cinema com o filme Força Maior do diretor sueco Ruben Östlund - o mote , contudo, envolve questões das relações  familiares. A história acontece numa estação de esqui em que essa família passa férias. Num determinado momento em que todos estão num restaurante panorâmico, ocorre um estrondo e a suspeita de que, vinha em direção ao restaurante, um avalanche. No pavor da situação o personagem Tomas, pai e marido nessa família, foge e retorna logo após saber que não havia era verdadeiramente um avalanche, se tratava de um fenômeno de deslizamento de neve rotineiro à estação. Após esse evento,  discussões, que envolvem negação, acusação e  culpa, se discorrem  no restante do filme e traz várias interrogações desse  ato da natureza do personagem. Força Maior, assim como Lord Jim   traz à tona a crueza do instinto humano em face as ameaças naturais. Um instinto desprovido de laço social, puramente sobrevivente e sem palavras. Atos em que não se pede desculpas, porque não há tecnicamente culpados pois o instinto não está registrado no campo do desejo, mas no da necessidade irrefletida. É sempre difícil lidar com essas necessidades instintivas frente aos conceitos de coragem e covardia – digamos que não há, nesse caso, como verificar a índole do sujeito e tirar dele julgamentos éticos ou morais – a natureza  instintos são, nesse caso, sempre socialmente decepcionantes. Talvez o processo civilizatório tenha criado dispositivos que façam frear esses eventos grotescos, contudo eventualmente se  assistira a situações semelhantes

  O Filme, contudo, ainda abre outras janelas de reflexões. O ato simplesmente puxa a linha tênue de uma relação conjugal que já  apontava para o fracasso. A função paterna ou masculina que é hoje tão pouco discutida – diria até desprezada - é posta novamente à mesa de discussão. Quem seria esse homem contemporâneo que teria que lidar com a natureza selvagem? Se fala tanto no ambiente da psicanálise em enfraquecimento da função paterna. o filme vem sutilmente abrir nova discussão e aponta para o lugar vazio,  provisória e simbolicamente desocupado. O filme traz de volta de forma escancarada o apelo ou a retificação dessa função  dissolvida no discurso contemporâneo sob o nome da covardia.


Marcos Creder