Estranho título, não? Talvez não soe estranho para quem já teve a oportunidade de conhecer o livro A História Social da Criança e da Família de Philippe Ariès. Contudo, o leitor aqui presente que não leu ou conhece a referida obra e estudo, não se confunda: não estamos a falar de crianças (meninos ou meninas), mas sim da infância, ou melhor, do sentimento de infância.
Neste
seu farto livro Ariès tematiza o conceito de infância através de
três blocos históricos, a saber: Antiguidade, século XIII e do
século XVIII até os tempos atuais. Até o século XIII, demonstra
o autor, a criança praticamente era vista como um adulto em
miniatura, não havendo distinção clara entre o mundo infantil e o
mundo adulto. Já a partir de meados do século XIII vai-se ter a
primeira transformação na ideia de infância que começa a
preservar a inocência da criança, e para isto afastando-a do
convívio adulto através da criação de instituições escolares.
Já no terceiro período histórico – século XVIII –
consolida-se o conceito de infância como o herdamos. É desta época
em diante que vai gradualmente ocupando o lugar central no seio da
família que, por sua vez, transforma-se em uma família pedifocal.
O privilégio dado à criança de ser criança parece estar sofrendo um retrocesso, embora muitos de nós não nos apercebamos. Comecemos pelo vestuário. Os meninos e meninas de agora se vestem como adultos, bem como se comportam como se adultos fossem. Vivenciamos o declínio e até mesmo a supressão da infância como fase inicial da vida, mediante o encurtamento da fronteira entre o mundo da criança e o mundo do adulto.
O tempo
de convivência dos pais com as crianças é cada vez menor, bem como
a outrora figura da mãe presente em casa e na criação da prole
está se escasseando, devido principalmente ao duplo carreiramento
profissional do casal. Os filhos quando não estão entupidos de
tarefas e atividades (escola, balé, inglês, judô, natação, etc)
estão entregues à “pedagogia da mídia” (televisão, dvd, internet, games, etc). A família mal tem espaço e tempo para se
reunir e conversar sobre a vida e o cotidiano.
O
declínio gradual da infância enquanto infância é bem discutido
pelo crítico social norte-americano Neil Postman, em seu livro O
Desaparecimento da Infância. Lembra-nos o autor que vivemos um
período histórico onde a presença da mídia eletrônica se faz de
maneira hegemônica e dominante. Para ele a televisão, por exemplo,
contribuiu em muito para destruir a linha demarcatória entre
infância e adulteza. Frente à televisão a criança, embora
protegida pelas paredes do lar, está exposta a inúmeras e
incontáveis imagens e cenas de violência e sexualidade, bem como é
instigada a uma postura de consumismo exacerbado. Por meio da
televisão e da internet uma criança precocemente entra em contato
com o mundo adulto e, às vezes ou muitas vezes, com o que ele tem de
pior.
Mesmo
que o leitor ora presente ache normal ou nem perceba, tente observar
com mais agudeza as brincadeiras infantis de hoje e verá que as
mesmas estão adultificadas. Os sinais da precocidade adulta na
criança são claros e visíveis: modelo de roupas, hábitos
alimentares, linguagem, comportamento, objetos de uso pessoal,
erotização, participação de menores em práticas delituosas ou
criminosas em número crescente. O visual de uma criança e de um
adulto é cada vez mais idêntico, distinguindo-se quase tão somente
pelo tamanho diminuto. Será isto uma regressão sócio-histórica
para antes do Iluminismo?
“A
infância é um artefato social, não uma categoria biológica”,
escreve Postman. A infância, criada conjuntamente com o surgimento
da Modernidade, a cerca de 350 anos atrás está em estado
agonizante. O paradigma antes vigente floresceu durante os referidos
séculos e sedimentou entre 1850 e 1950 (surgimento da televisão),
período este em que a criança passou a ser alvo de atenção
exclusiva, tempo este também que moldou a constituição da família
burguesa.
A
crítica de Postman à televisão tem sua relevância e pertinência,
visto que, ao contrário da literatura, não há hierarquia de
compreensão e linguagem, pois a imagem é para todos, crianças ou
adultos. Televisão não requer compreensão – diz Postman – e
sim recepção. O volume frenético de informações contribui
sobremaneira para ir minando e acabando com algumas fases da vida. Da
mesma maneira que o mundo letrado de antes ajudou a separar ou
ampliar os limites entre o mundo infantil e o mundo adulto
(literatura infanto-juvenil e literatura de adulto), a televisão e a
internet, com seu poder de poderem ser assistidas por qualquer faixa
etária, acaba por construir novos e diferentes valores sociais. A
cultura de consumo e a ideologia da sociedade de massa constroem
assim corações e mentes, e praticamente quase todos não acham nada
demais verem suas filhas em festinhas infantis dançando a dança da
garrafa, eroticamente rebolando em cima de uma garrafa – como já
tive oportunidade de presenciar.
Joe Kincheloe, coautor do livro Cultura Infantil, afirma que
“o
acesso das crianças a informações do mundo adulto transformou tudo
drasticamente”, ou
alguém por acaso duvida que tanto a televisão, como a internet e
outras mídias, funcionam como uma espécie de “babá eletrônica”
das crianças pós-modernas? Percebam que se antes a memória que
trazíamos de nossas meninices eram impregnadas pelas lembranças das
presenças de nossos pais e de outras crianças, as dos futuros
adultos do por-vir virão cheias de imagens eletrônicas provindas de
telinhas de computador, Ipod, tablet e televisão. Quantas crianças
não aprendem primeiro a manejar computadores antes mesmas de serem
alfabetizadas? Nem necessita responder, é só olhar ao redor.
Os
meninos e as meninas estão virando adolescentes cedo demais, até
mesmo antes da puberdade, enquanto que os adultos estão ficando cada
vez mais adultecentes, como se a adolescência fosse uma
interminalidade interminável. Vivemos um imenso paradoxo: enquanto
os adultos de infantilizam, as crianças se adultificam. Evidente,
portanto, que as relações intersubjetivas sofrem alterações sob a
influência insidiosa da mídia e da sociedade de consumo.
Fim
do mundo? Não, outros tempos. Tempos onde as crianças não pedem
permissão aos adultos para aprender. Tempos tecnológicos estes em
que os adultos é que são ensinados pelos “pirralhos”. Só temo
sobreviver até o dia em que não haverá mais crianças, adultos ou
velhos, mas só uma multidão de incansáveis adolescentes. Não
quero, sinceramente, estar vivo quando vivermos em uma sociedade sem
crianças, ou melhor, uma sociedade sem o sentimento da infância e
toda a sua puerilidade ingênua e de lúdica inocência. Não quero
participar de uma cidade de Hamelim onde o flautista nos tirou todas
as crianças, mas sim resisto em continuar desejando o ser humano em
todas as suas idades.
Joaquim
Cesário de Mello
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