Freud se perguntava por que alguns sonhos tendiam a ocorrer de forma semelhante nas pessoas, mesmo que os sonhadores tivessem vividos
histórias de vida diferentes. Suspeitou que houvesse um fato próprio do humano
- ou filogenético - que escapasse da história do sujeito – ou seja, da ontogênese. Esse entendimento gerou equívocos e ajudou a proliferar manuais rasteiros de interpretação dos sonhos. A ideia de que há algo comum nos sonhos parece verdadeira, contudo, a interpretação vem do que há de singular no sujeito. Há
peculiaridades na cena aparentemente semelhante. Um exemplo frequente de sonhos que se repetem são aqueles em que o
sujeito sonha com um ente já falecido, e que, no sonho, não sabe que morreu, e o sonhador tem receio de comunicar-lhe
a morte. Freud faz várias interpretações
que trazem os ressentimentos e as culpas daquele que sonhou, como se
no sonho, o ato de levar, ou comunicar, o morto ao lugar da morte, fosse uma segunda morte, agora provocada por quem sonhou. Esse angustiante impasse que deixa o outro viver dentro do sonhador fazem parte dos pilares do luto melancólico.
Costumo dizer que textos leigos podem ser mais úteis
que textos técnicos ou especializados. Acho que há boas descrições de
eventos psíquicos em texto literários que os deixam mais perto do evento em si que determinados conceitos acadêmicos. Não quero, contudo, desconsiderar o texto especializado.
Li recentemente um livro diferente. Livro que traz trechos da biografia - em verdade uma autobiografia - do seu autor com ênfase a um severo estado melancólico. Sob a forma de um anacrônico diário, ainda sob a forma de um esboço assemelhando-se a um rascunho, o texto consegue espezinhar o sofrimento de quem escreve e de quem lê . Quem é o autor? Bóris Fausto. Ele mesmo! O mesmo Boris Fausto historiador, um de nossos maiores historiadores. Quem se interessou em conhecer a história do Brasil com mais detalhes, certamente o conhece. Mas que interesse o
diário de um historiador despertaria? A
depender do que se escreve poderia ter nenhum ou muitos e preciosos interesses
– tenho, contudo, receio de muitos textos
que são escritos por celebridades que acreditam que qualquer
coisa que venha dizer por escrito, faz literatura. Li livros de pessoas de destaque, que são sofríveis. Não é, contudo, o caso do livro O brilho do Bronze (um diário) de Boris Fausto.
Aparentando um texto de palavras modestas, esse diário discorre sobre o período imediatamente depois do falecimento de Cynira, esposa de Fausto, com quem foi casado por quarenta e nove anos. É através do surpreendente lirismo narrativo – não esquecer
que Boris Fausto é escritor - e da simplicidade com que usa as palavras que o livro torna-se uma obra grandiosa.
Um diário se inspira na ideia de guardar recordações e na organização ou cronológicas da passagem dos dias.
Nesse livro, contudo, essa regra é desnecessária. Os dias se preenchem, às
vezes, por textos curtos, frases supostamente sem importância, mas que com a sucessão das palavras, vão dando forma aos imprecisos sentimentos dos melancólicos, e se constrói um mosaico complexo dessa singular experiência psíquica – o discurso melancólico tende a expor aridez e as elipses de palavras inauditas. Fausto não poupou situações de exposição, os acontecimentos íntimos embaraçosos e ambivalentes. Boris traz sonhos, muitos sonhos, e um deles me fez voltar a Freud:
“sonhei
com ela duas noites, e uma cena me comoveu particularmente: Cynira está em meus
braços, chorando ‘miudinho’, com aquela discrição de sempre˜
outro
sonho:
“Ela
aparece falando de problemas educacionais e da necessidade de conversar com
Paulo Renato [ex-ministro da Educação]. Quando digo que Paulo Renato morreu,
lamenta muito e me pergunta por que não lhe havia contado antes. Sem graça,
digo que aconteceu no período em que ela “desaparecera”.
O
pudor em relatar a (segunda) morte ao morto provoca-lhe
sofrimento e dor. Esse sentir provoca uma aflição devastadora: a angústia, a culpa e a autoflagelação daquele que vive – como disse Kierkegaard, a angústia da morte é está a beira dela e não poder morrer. E assim sofre o melancólico, assim constrói armadilhas que criam um sem número de pensamentos inviáveis e de perguntas irrespondíveis. Fausto se pergunta: “como é possível alcançar a resignação/serenidade em meio às
sombras?” Se somos condenados a viver nesse terreno sombrio e pantanoso,
onde estaria a serenidade? Boris Fausto é sábio nas
perguntas e mais sábio nas pequenas soluções – afinal, não existam
grandes soluções. O texto é invadido por eventos do dia-a-dia que o suaviza e, aqui e ali, faz rir em meio ao sarcasmo e o bom humor. Não deixa de nos
trazer, contudo, os ruídos da melancolia. Diversas passagens do texto funcionam como metáforas que elaborem esse luto, mas algumas passagens desse processo me impressionou:
“Quando
fala de quartos dos mortos, Michelle Perrot (autor de História dos Quartos) se
refere a duas atitudes opostas: de um lado, a de tudo preservar; de outro tudo
tentar apagar, até mesmo a lembrança da voz do morto. Fico rememorando a voz de
Cynira, fazendo força par não esquecê-la, temendo que isso aconteça. Por quê,
nas nossas longas conversas sobre sua vida que reproduzi em “Memórias de um
historiador de domingo”, não gravei alguma coisa, preferindo deixar a conversa
escorrer livremente?”
“(...) sonho:
chego na praia da Enseada e vejo que quase tudo está modificado para pior.
Nossa casa foi invadida, uma porção de gente atravessa ela, incessantemente Vejo a praia “arruinada”, como os caiçaras falava tempo, quando nuvens
escuras se desenhavam no horizonte.”
Marcos
Creder
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