A ocorrência do fenômeno dos transtornos alimentares tem aumentado significativamente nos últimos anos. Atualmente avalia-se que cerca de até 4% da população geral manifestam tais doenças. Embora a grande maioria atinja as mulheres, mais precisamente mulheres jovens, o número dos transtornos em homens tem igualmente aumentado. A relação média homem-mulher é de 1-10. Alguns estudos apontam a correlação nos homens entre anorexia-bulimia e a homossexualidade. Interessante também destacar se tratar de uma doença mais encontrada países ou sociedades industrializadas e desenvolvidas. São dados ou achados que merecem ainda maior entendimento e aprofundamento.
No início da década de 80 do século XX Pierre Weil, conjuntamente Roland Tompakow, publicou o hoje clássico livro "O Corpo Fala". Sim, o corpo não só fala, ele também às vezes grita, urra, berra, geme, suspira, mugi, brada e clama. Avisa, pede socorro. Comunica. Trata-se de uma comunicação silenciosa da comunicação não-verbal que vem lá dos subterrâneos da alma humana. Todos sabemos, creio, a forte interação corpo-mente, e como o estado emocional e psicológicos de alguém pode desencadear diversas manifestações orgânicas - a nossa pele, por exemplo, que o diga. Doenças dermatológicas como psoríase, urticária, desidrose, dermatite seborréica, acnes, hiperidrose axilar, lupus, entre outras, têm em suas raízes o psiquismo humano. Se a pele é o envólucro do corpo, o corpo é o envólucro da alma. Mente e corpo não são duas áreas separadas, a ponto de uma alteração no equilíbrio psíquico provar alergia emocional. Tudo que é humano e vivo envolve emoção. Se corpo e alma fossem separados certamente a ponte que ligaria ambos seria as emoções.
Voltemos à anorexia e à bulimia. Não vou aqui resumir tudo ao medo de crescer, mas que tal medo ou dificuldade psíquica aparece subliminarmente lá isso aparece, principalmente na questão da anorexia. Crescer significa igualmente assumir responsabilidades, lidar com novas expectativas e enfrentar novos problemas. Paradoxalmente, embora psicologicamente possa existir o medo de se tornar adulto, o anorético fisicamente toma a aparência de um velho. Tal recusa inconsciente de crescer leva a pessoa a irracionalmente tentar conservar as formas do corpo infantil e, assim, também recusar a sexualização da feminilidade do corpo que ocorre a partir da puberdade. Sentimentos de dependência, incapacidade e dificuldade de autonomia são como que compensados somaticamente. Não é à toa que o fenômeno da anorexia é mais encontrado na adolescência (adolescência e sexo feminino são as principais populações de risco). É como se a sexualidade (adulta) e a responsabilidade andassem juntas de braços dados. A coisa toda é tão "doida" e "tresloucada" que a distorção da imagem corporal que o indivíduo pode vir a morrer literalmente de fome ou das consequência da privação alimentar autoimposta. Só para se ter uma ideia de 5,6 para cada mil pessoas com anorexia nervosa (AN) chegam a óbito - o que faz da AN o transtorno psiquiátrico mais mortal de todos.
A fuga do conflito inerente a passagem do mundo infantil para o mundo adulto é representado na ilusão da busca de um corpo ideal e perfeito, seco, retilíneo, magérrimo e esquelético. Lembrar que estamos frente a um transtorno psíquico grave, e a lógica do ideal de uma pessoa com distúrbio anoréctico não é a mesma de uma pessoa sem anorexia. É como se fosse a buscar "enlouquecida" de preencher um vazio da alma pela imagem de um corpo que nunca se alcança. O vazio da alma não é um vazio material ou de objeto, mas sim um vazio afetivo.
Embora esteja utilizando-me de palavras forte como loucura e treslouquice, uma pessoa pega pelas garras da anorexia não é psicótica ou louca. Sua doença não é uma insanidade delirante ou alucinatória, porém um transtorno mental cujo comportamento pode levar os outros a assim taxá-la. A ensandecida procura pelo imaginado (disformemente) corpo ideal em que se espera ser feliz é um engano da mente, pois somente leva o sujeito à doença e ao sofrimento. Há anorécticos que chegam a deixar de tomar banho, só para não ter quer ir ao banheiro e se olhar no espelho.
Emoção e comida - estranha relação esta. Embora a influência da sociedade atual seja inegável (a pressão social e midiática faz com que precocemente um jovem púbere e imaturo comece a ser crítico em relação a seu próprio corpo), por detrás de cada doente há sempre a sua história pessoal que fez com que o transtorno surgisse, A forma distorcida de pensar tem lá suas múltiplas causalidades, entre elas o ambiente familiar. Do ponto de vista sistêmico é frequente encontrarmos características familiares comuns em pacientes anorécticos, entre elas um sistema homeostático rígido, com pouca motivação para mudanças, com envolvimento excessivo entre seus membros devido a fronteiras intra-sistêmicas difusas (presença de superproteção). Fatores genéticos e biológicos são também parte importante da etiologia mórbida. Psicologicamente fatores como ausência de relacionamentos significativos geralmente antecedem ao surgimento da AN, como se um corpo magro fosse a única forma de ganhar amor e aprovação dos outros.
Tanto a anorexia quanto a bulimia não deixam de ser quadros obsessivos. Obsessão pela magreza, obsessão pelo corpo perfeito ou obsessivo medo de ficar gordo, tanto faz: é sempre obsessão. A comorbidade é clara, muitas vezes. O anoréctico tipo restritivo é aquele que faz dieta radicalmente mórbida e exercícios físicos excessivos. Sua obsessão é tipicamente ideativa. Já no tipo purgativo (sintomas bulímicos dentro da AN) a compulsão por comer é evidenciada, acompanhada por purgações mediante vômitos auto-induzidos ou por uso abusivo de laxantes.
A expressiva ocorrência da bulimia e da anorexia na adolescência faz-nos pensar na correlação com a sexualidade. As mudanças ocorridas bio-psico-social nesse período desenvolvimental suscitam angústia quanto ao desconhecido. Neste sentido - psicologicamente falando - tanto a bulimia quanto a anorexia seriam expressões patológicas da dificuldade do jovem em processar emocionalmente o que lhes passa por dentro. O corpo assim fala sem palavras a angústia da alma. O corpo, portanto, passa a ser o cenário de um drama adolescente em busca de ajuda em sua tentativa de contornar o vazio, a ansiedade, o medo e a depressão que lhes acomete.
O corpo humano em muito revela a pessoa e a alma humana que lhe habita: as curvas de sua história, seus segredos, seus traumas, seus tormentos, suas frustrações e suas vitórias. O corpo é assim, também, o lugar do passado e do presente, e das ansiedades quanto ao futuro. O corpo é uma biografia de uma vida que não se terminou. O artista e poeta Jean Cocteau já dizia que "o corpo é um parasita da alma", enquanto que para o dramaturgo Shakespeare o corpo é o jardim onde a vontade é seu jardineiro. Já para o escritor Marcel Proust é o vaso onde se encerra a nossa espiritualidade. Ou o corpo é, como escreveu o italiano Carlos Dossi no final do século XIX, "a vagina da alma"? Seja o que o corpo humano for ele é tão humano quanto o humano que lhe ocupa o espaço interno. Pensemos, pois, o corpo como uma janela onde escapa ou se esconde o brilho de uma estrela que se acha e se sente o centro sísmico do universo.
Joaquim Cesário de Mello
Nenhum comentário:
Postar um comentário