Porém, à época em que o menino ainda idealizava filhos vindouros, como quem aguarda em tocaia sonhos aos quais entregasse por inteiro seu espírito e suas inquietudes aos embalos incoerentes dos devaneios substitutos da vigília, soterrava o desejo pela ida à cama dos pais embaixo de toneladas de medo. Logo este afeto primitivo, com o qual viemos à vida, que em seu impensado peso nos fixa ao chão do instante como as profundas raízes das estátuas públicas de mármore. Por mais que a realidade e seus breus lhe assustassem o peito onde arfava palpitante o ímpeto de se apaziguar em meio aos seus, era maior o temor de se aproximar da cama de casal que a ele era imensa e sólida, ornamentada em robusta madeira maciça de lei, lugar que, com certeza, pensava, suportaria abrigar todas as crianças do mundo e o peso de seus sustos. Assim, por receio que lhe impedissem o assentamento junto aos corpos alheios (de expulsão já bastava o útero), trocava as hesitações e as rejeições pré-maturas pelas assombrações habitantes do quarto escuro. O assobio das brisas invernais e o esvoaçar sobressaltante das cortinas bailantes frente a entreabertura das janelas, acenavam fantasmas de sombras e gemidos, que nem o vedar das pálpebras evitaria - o negrume sombrio do quarto muitas vezes era preferível à escuridão sem cor dos olhos fechados. Na rua, cachorros uivavam sentimentos inumanos enquanto o menino em sua cama escutava ruídos de menino.
Longos são os anos que separam o menino do adulto. Não mais existem os pavores infantis, abandonados naquele quarto onde hoje possivelmente dorme algum outro menino. Sequer restou a cama de casal proibida e seus residentes. Por que haveria ele de temer agora ilusórios espectros noturnais se os fantasmas de suas perdas perambulam até mesmo à luz do sol? O menino formado homem sabe que a substância do medo é perene e dela é feita a solidão, o que muda é a sua aparência e a sua superficial presença. Talvez por isso os mortos virem assombrações: quando pequenos, tememos a invisibilidade das trevas e a cegueira da escuridade, esvanecidos reaparecemos indefinidos para sermos vistos, pois morrer não é perder vida, é desaparecer, e o exercício da eternidade bem pode ser o de espantar o sono das crianças, nesses tempos desérticos em que a saudade ocupa o vazio deixado no rastro da sonoridade impronunciável de um simples breve "boa noite".
Joaquim Cesário de Mello
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