Minha
pele tem dupla face: aquela com que me visto e aquela sob a qual habito. Abaixo
de ambas existe uma profundeza enorme que muitas vezes me assusta. Sou quase
todo uma latência que pulsa nos estremecer dos meus mais pequenos e mínimos
gestos. Aquém das superfícies nada sei de serenidades. Acaso pudessem as
pessoas me conhecer o que achariam era um inesgotável e buliçoso inverno.
Porque
me inquieto eu sonho; porque sonho não sou. Não sendo, penso-me. Pensando, vejo-me; vendo-me, me surpreendo. E me surpreendendo me indago. O que posso ser de
mim, o que ainda não fui? Sou aquele que não sou? Ou serei apenas aquele que
não conseguiu ser? Se sou assim tantos, então quem sou de fato eu? Minhas labaredas
internas não me queimam, porém me aquecem. Meu inverno interno não é feito de
chuvas e trovoadas, mas de mansas nuvens em movimento. Sim, isto sei quem sou:
uma nuvem entrajada de mim.
Nos
anos 80 passados Cacaso musicou os seguintes versos, celebrados na voz de Sueli Costa: “quem me vê assim cantando/não
sabe nada de mim./dentro de mim mora um anjo/que tem a boca pintada/que tem as
unhas pintadas/que tem as asas pintadas/que passa horas à fio/no espelho do
toucador”. Mas dentro de mim não moram anjos nem demônios. Dentro de mim
mora um céu inteiro. Sou o meu sol, minha lua e minhas estrelas. Sou meu próprio
paraíso e meu inferno. Sou infinito enquanto não findo. Sou eu mesmo meus arcanjos, meus querubins decaídos
e meu Éden. E no transitório celestial de mim sou pagão, ateu e cristão. Sou uma
profunda contradição que anda de roupa por aí. Quem me vê assim cantando, não
sabe nada de mim.
Na
clareza dos seus mistérios, o homem se encontra e se traduz. O dialeto da alma
é diferente de todas as racionalidades humanas. A língua de fora exclama, enquanto
a de dentro estala. Talvez esteja certo Pascal quando diz que “o coração tem razões que a própria razão
desconhece”.
Nossa
mais verdadeira existência não transita pelas ruas e praças, pois é nos quartos
e becos onde reside o existir e suas autenticidades. O eu da alma não foi
feito para claridades, porém para as sombras privadas dos fundos. Nas abissais
profundezas o eu se dissolve na liquidez de um oceano cósmico. O que entendemos
de eu – como ensina o Budismo – é uma ilusão construída pela mente. O que
pensamos que somos, pois, nada mais é do que resíduos de nossas sensações,
percepções e sentimentos. Para fora terminamos; para dentro somos infinitos e
eternos.
Freud
nos dizia que somos um cavalo montado por um cavaleiro. Somos ambos. O cavaleiro
conduz a força do cavalo com suas rédeas, sem elas o cavalo conduz o cavaleiro.
Solto de mim que riscos corro do que serei? A força que trago necessita ser
domada, afinal sem dono dispararia para bem distante de mim. Por isto entendo
mais uma vez Fernando Pessoa (Bernardo Soares) quando escreve que “porque sou do tamanho do que vejo e não do
tamanho da minha altura”.
Ah!, não me venham com cavilações
e prosopopéias, meus caros senhores. Meus interiores não são construídos de
carnes ou vísceras, mas sim de quimeras e desejos. Por isto é que me sinto
quando me sinto desperto para dentro na impalpabilidade vulcânica de todos meus inconsumos.
Transpiro versos como quem faz prosa. Grito silêncios nos entremeios dos meus sussurros. Meu sabor é doce por detrás do azedo e amargo em lugar de ameno. Já cantava Caetano que “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é...”. Apenas eu e somente eu sei dos meus encantos e desencantos, das minhas paixões e dos meus ardores. Minhas inquietações são mansas e porque mansas são imensas. Não me assossego nem um instante, nem quando pareço calmo, pois pacato e pacífico sou todo inquieto.
Quem me vê assim cantando não sabe nada de mim...
Joaquim Cesário de Mello
Um comentário:
Se palavras contemplassem o que sinto seria literatura.
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