Há uma discussão nos meios acadêmicos de que a narrativa da ciência tem que se afastar das “imprecisões” e das prolixidades do texto de ficção. A alegação é simples: deve-se trazer a ideia, o pensamento, a “questão”, da maneira objetiva, livrando-se das ambiguidades e das alegorias da prosa literária. Imagino que aquele que pensa a ficção com "recheios" desnecessários, teve pouco acesso aos seus textos, talvez tenha lido apenas na adolescência, nos tempos que se cumpria as obrigações de colégio, e que nos deixou como legado o ódio à literatura de ficção. Desnecessária e inventiva, a ficção foi jogada no campo da mentira e fora da verdade científica.
Estava numa livraria, procurava um livro, e enquanto o livreiro pesquisava, encontrei outro. Trouxe os dois, o segundo, vindo ao acaso, li primeiro. Por quê? folheei-lo e observei-lhe algumas palavras, frases avulsas e talvez por sorte, li ainda no prefacio a passagem: “Pois não há contradição radical entre a Sociologia e História, mesmo quando a História deixa de ser de revoluções para tornar-se de assombrações”. O livro Assombrações do Recife Velho, editado pela primeira vez em 1955, fora escrito por Gilberto Freire. Poderia ter deixado o livro na prateleira, mas tinha que comprá-lo, era injusto não fazê-lo, a frase o havia comprado e ainda me convidava a explorá-lo.
Escrever sobre assombrações num livro de sociologia provoca discussões sobre o texto “científico”. Para validá-lo teria que tratá-las como superstições ou crendices, e se submeteria a contensões e mutilações da academia. Mas Gilberto Freyre surpreende, faz diferente e traz um texto que poderia ser narrado em primeira pessoa, haja vista sua estrutura prosaica, que faz com o leitor mergulhe no ambiente dos contadores de histórias de malassombros. Um texto que na academia seria interpretado como por demais reflexivo, opinativo ou digressivo.
Os pesquisadores se transformaram em operários do pragmatismo e, consequentemente, do texto insosso - arrisco em dizer que isso ocorre na própria literatura de ficção, quando os críticos sustentam frases como: “uma linguagem seca, econômica, enxuta etc.”.
Gilberto Freyre me fez esquecer essas querelas ao permitir ousadias ao construir, assim como os autores do século XIX – por que não? – frases elegantes, eventualmente, irônicas ou descritivas. Em "Assombrações do Recife Velho", os acontecimentos não são apenas descritos ao leitor, mas narrados na dimensão de uma experiência subjetiva, algo como se o texto tivesse escrita exclusivamente para aquele que o lê, de certo modo tornamos seu personagem. Textos como esses fazem com que Gilberto Freyre e suas assombrações, reedite o clássico axioma de Barthes: "saber com sabor", e, mesmo, com falta de rigor científico, pisoteiam teses e dissertações que mofam nas prateleiras das universidades.
Marcos Creder
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