domingo, 14 de maio de 2017

Poriomania


Uma das ideias mais comuns vividas na infância, que geralmente vem em consequência de conflitos familiares ou até mesmo  do tédio, é o pensamento de fugir de casa. Penso que toda criança já se imaginou arrumando seus objetos, suas pequenas tralhas, suas roupas, para desaparecerem  de seus lares seguindo destino incerto. Algumas chegaram a se distanciar por alguns metros,  outras alguns quilômetros, a maioria apenas pensou nessa fuga, raros fugiram de fato. Essa ideia de desaparecer, sumir do mapa ou evapora-se do convívio social,  tem algo de excitante não só na infância, mas entre adultos, que, arruinados com seus sucessivos fracassos e repetições, imaginam-se em fugas espetaculares que, em sua maioria, não são realizadas. Fugir como quem foge para o reinício, para o renascimento,  numa espécie de releitura do mito da fênix, em que se renasce em lugares em que ainda  se é desconhecido.  


O tema do desaparecimento, aliás é muito explorado na literatura e no cinema. Sem fazer esforço, lembro de  filmes como “Paris, Texas” de Win Wenders, “Into the Wild” de Sean Penn,  “Telma e Louise” de Ridley Scott, “Esposamante” de Marco Vicário (com a belíssima e recém-falecida Laura Antonelli) ou de Livros como “O Falecido Mattia Pascal” de Pirandello, ou “On de Road” de Kerouac.  Há, também, várias canções que fazem alusão à estrada, a viagens e, esse eterno impulso de andar à deriva, faz parte do panteão da juventude, transitar pelas beiras do mundo. Viajar, desaparecer, transitar pela beira do mundo, seria o primeiro passo, embora que metafórico, para dar  cabo aos vícios  e a caricatura social que nos deram - infelizmente, mesmo na menor mochila, não deixamos de levar traços de nossas repetições, de nossos erros.

Escrevi esse texto pensando em um desses viajantes e fugitivos. Pensando num sujeito que marcou uma geração com suas canções de apelo à juventude, já anunciando, desde o inicio, o tom nostálgico que iria guardar  na maturidade. Esse cantor, ou músico, que à vista de minha mãe era sem graça, sem voz  - “sem dicção!”, comentava -  e sem estilo, era Belchior.  Belchior foi um daqueles artistas que fui paulatinamente me rendendo a seu talento, pois, de início, concordei com minha mãe -  “como é que um sujeito desses ganha semanalmente o 'Globo de Ouro'? Como alguém gosta  desse cantor recheado de cacoetes?", perguntava-me. Eu ainda era criança.

No dia que descobri o Belchior que veio a me encantar - não me lembro quando foi - , tive a sorte de ainda estar na  juventude e de poder saborear suas canções e suas composições escritas. Duas delas trazem frases ou poemas que, já naquela ocasião,  chamaram-me atenção  e que ainda me impressionam até os dias de hoje. A primeira está na música Paralelas: “como é perversa a juventude no meu coração, que só entende o que é cruel ou o que paixão” - palavras tão simples e despretensiosas mas que, a meu ver, sintetizam os longos questionamentos acadêmicos  sobre as inquietações  da juventude e da adolescência - enfim,  A juventude em uma frase.  A segunda está na canção Como Nossos Pais que se consagrou na voz de Elis Regina:

Viver é melhor que sonhar
E eu sei que o amor é uma coisa boa
Mas também sei
Que qualquer canto é menor do que a vida
De qualquer pessoa”

Suas músicas eram fortemente influenciadas pelo Rock  dos anos 1960, pela música folk norte-americana  e pelo blues de todos os tempos, fazendo com que suas letras se agarrassem às canções por vários laços melódicos, entre eles, o traço melancólico e, especialmente, o traço nostálgico. A nostalgia, aliás,  é uma das marcas registradas da obra de Belchior. A nostalgia estava o todo tempo sendo declamada  no seu texto,   estava mesmo antes que a velhice ou a saudade se consolidassem.

Pois bem, Belchior deu-se a desaparecer do mundo, deu-se a fugir como um louco com impulsos  poriomaníacos - em psicopatologia o impulso de andar. Várias são as ocasiões em que desapareceu do mundo midiático e foi redescoberto ao acaso e, em seguida, tornou a desaparecer. Lendo suas letras percebi que seus desaparecimentos já estavam testamentados  em trechos de suas canções : “saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho, deixem que eu decido a minha vida” ou como em “Coração Selvagem”: “Meu bem o mundo inteiro está ali naquela estrada…”  ou em outro trecho: “andar caminho errado pela simples alegria de ser”. Os seus desaparecimentos comunicavam, além da ideia de manter uma vida privada, a ideia de sustentar a substância da juventude. A ideia de uma eterna reconstrução ou da efetivação daquilo que disse com tanta precisão: “ qualquer canto é menor que a vida de qualquer pessoa”.

Costumo dizer aos viajantes, especialmente aos ansiosos, que andam com mapas e aparelhos  GPSs, que viajar é se perder. Eles ficam indignados com essa minha frase, mas em seguida para aliviá-los, acrescento, que ninguém se perde para sempre. Uma hora estará de volta ao prumo. Pena que o verbo perder, nesse momento, seja tão diferente de desaparecer. Pois sim, Belchior depois de alguns desaparecimentos, enfim, como ocorrerá com todos nós, desapareceu para sempre. Aliás, um paradoxo se pôde observar, seu aparecimento se deu pelo seu desaparecimento, ou seja, pelas vias da morte.

Marcos Creder

2 comentários:

Anônimo disse...

Texto lindo!!!!

Mônica Miranda disse...

Grande Belchior! Muito bom.