“A vulgaridade é um lar. O quotidiano é materno”
Fernando Pessoa
“Eu
sou do tamanho do que vejo”. Este presente titulo é um verso de Fernando Pessoa
na voz do seu heterônimo Alberto Caieiro, em “O Guardador de Rebanhos-poema
VII”. Embora o próprio Pessoa tenha também escrito que "cada
um de nós é um grão de pó que o vento da vida levanta, e depois deixa
cair.", também afirmou que “fui,
dentro de mim, coroado imperador”. Ele mesmo que em seu “O Livro do
Desassossego” igualmente expressa que “o homem fatal, afinal existe nos sonhos
próprios de todos os homens vulgares”. Fernando Pessoa não é paradoxal: a alma
humana é paradoxal.
Por
detrás ou por baixo das camadas que nos encobrem encontra-se o humano em sua
mais pretensa grandiosidade. Nos subterrâneos de nossas superfícies e
aparências espreita, feito animal feroz, a nossa autoimagem. Nosso psiquismo de
origem é narcísico, pois somos feitos não de barro, mas de plenitudes. Quando
ainda sequer sabíamos que existíamos existentes em um mundo circundante e maior
do que nós, nos iludíamos de sermos sós e todo o universo, mas não somos.
Perdida esta primeira ilusão, nos achamos então o centro do universo, mas não
somos. A realidade nos impõe sermos periféricos, mas nem sempre aceitamos.
Achamo-nos especiais, exclusivos e preferidos dos céus. Mas não somos. Somos
pequenos, diminutos e insignificantes. O mundo, todo o universo, assim como o
sol, as nuvens e as estrelas não dependem de nós. A vida não depende de nós.
Porém, se somos pequenos, somos pequenos como homens. Nossa alma não. A alma
não é pequena. A alma pode tudo, a alma quer tudo, a alma se acha tudo. Todavia
todos os tudos da alma são quimeras e ilusões. A alma é pura imaginação, pois a
alma se imagina e se acredita que é alma. Ou como escreveu Marcos Creder aqui
no blog, em 19 de maio passado, “esse
espaço imaginativo que é regido pelo desejo é justamente o que nos dá o status
de humano: ser de ilusão”.
A
alma humana, em seu mais recôndito abrigo, pode sonhar ir a Júpiter, pode
querer todas as mulheres (ou homens) na cama que ela escolherá, pode fantasiar
feitos mais do que Napoleão fez, pode fazer filosofias em segredos que nenhum
Sócrates jamais fez, pode ter em seu peito hipotético mais humanidades do que
Cristo, mas na realidade, é como diz o poeta, seremos sempre o da mansarda,
ainda que nem moremos nela.
Por
isto retorno às palavras de Pessoa: “uns
governam o mundo, outros são o mundo”. No arcadismo de todos nós a
argamassa de nossas essências é uma mistura de imponência, vastidão e
majestosidade. Somos um embricado primordial e rudimentar de grandiosidades e
ideais. Assim entendo quando Fernando Pessoa escreve em seu “livro do
Desassossego” tais palavras e pensamentos: “Quisera
viver diverso em países distantes. Quisera morrer outro entre bandeiras
desconhecidas. Quisera ser aclamado imperador em outras eras, melhores hoje
porque não são de hoje, vistas em vislumbre e colorido, inéditas a esfinges.
Quisera tudo quanto pode tornar ridículo o que sou, e porque torna ridículo o
que sou. Quisera, quisera... Mas há sempre o sol quando o sol brilha e a noite
quando a noite chega. Há sempre a mágoa quando a mágoa nos dói e o sonho quando
o sonho nos embala. Há sempre o que há, e nunca o que deveria haver, não por
ser melhor ou por ser pior, mas por ser outro. Há sempre...”
Heinz Kohut, neurologista, psiquiatra e psicanalista, ao
mergulhar nos grotões do psiquismo, destacou que a onipotência, a grandiosidade
e o exibicionismo são características narcisistas naturais da mente e que assim
compõem o que ele chamou de Self Grandioso.
Tais características originárias da mente humana, diz Kohut, sofrem
transformações quando as mesmas são aceitam pelos pais (cuidadores) que são os
primeiros objetos que o psiquismo conhece e que através deles se desenvolve.
Escreve Kohut: “quando a exigência de
resposta em eco aos sentimentos de expansividade e de poder ilimitado são
recebidas de maneira favorável e respondidas, a criança finalmente abandona
suas exigências exibicionistas grosseiras e suas fantasias grandiosas, e a.
aceita suas limitações reais. As ruidosas exigências do self grandioso são
então substituídas pelo prazer pelo funcionamento realista e pela autoestima
realista”.
Embora saibamos, ou não nos seja difícil compreender que
nos iniciamos na vida como seres psicologicamente narcísicos, o narcisismo não
é uma fase ou etapa a se superar. Durante todo o nosso desenvolvimento nosso
narcisismo evolui. Quem, de sã consciência, há de negar a importância
fundamental do amor-próprio como base saudável de um indivíduo humano? Narcisismo,
portanto, não é sinônimo de patologia. É claro que há patologias narcísicas,
mas também é claro que há o narcisismo normal do adulto, assim como pode e é
normal o narcisismo na infância. Graças a este resíduo essencial do nosso
narcisismo é que podemos buscar ser mais, realizar mais, conquistar
mais, querer mais. Ou, dentro da ótica kohutiana, as ambições nos
impulsionam e os ideais nos puxam.
Assim, pois, entendo em parte a alma humana como nestes
versos de Pessoa:
Sou o fantasma de um rei
Que sem cessar percorre
As salas de um palácio abandonado...
---
Eu não sei o que sou.
Não sei se sou o sonho
Que alguém do outro mundo esteja tendo...
Creio talvez que estou
Sendo um perfil casual de rei tristonho
Numa história que um deus está relendo...
Sejamos
gênios ou mendigos, súditos ou majestades, anônimos ou poetas, pecadores ou
profetas, somos todos pretensiosamente divinos, poderosos e eternos; quando de
fato somos feitos de carne, vulneráveis e cheios de términos.
E ainda vos digo,
como diz Pessoa, “somos dois abismos – um
poço fitando o céu”.
Joaquim Cesário de Mello
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