domingo, 2 de abril de 2017

O spoiler da Velhice



As pessoas costumam  contrariar-se quando alguém  entusiasmado  dá o spoiler de um filme que tenha surpreendido.  Aliás, essa preocupação de criar finais surpreendentes fez com que muitos filmes de suspense ou de ação criassem tramas  mirabolantes com voltas e reviravoltas às vezes forçadas, fugindo do factível - embora que não seja necessariamente  a verossimilhança uma obrigação do cinema ou de qualquer expressão artística.  

Óbvio que a tensão por desvendar o final de um filme faz com que o espectador carregue sua curiosidade até o final, um jogo de sedução comum entre diretores, roteiristas e escritores. Um diretor que dê o spoiler ou que facilmente leve o espectador, ainda no início ou no meio do filme, desvendar o seu final, é geralmente mal criticado pelos cinéfilos que tem preferência pelo  suspense.  Acho que foi exatamente isso que ocorreu com as críticas levantadas ao filme “O melhor Lance” de Giuseppe Tornatore. Em sua grande maioria, os comentaristas  lamentaram o “spoiler” dado pela personagem protagonista ao personagem principal.

O filme trata de uma relação misteriosa e bizarra que se estabelece entre um rico e idoso leiloeiro, colecionador de obras de artes, e uma jovem cliente que o contratou para cuidar do espólio de sua valiosa herança familiar. A bizarrice se estabelece no momento em que os contatos estabelecidos entre o leiloeiro e a cliente são restritos apenas às conversas telefônicas, o encontro pessoal, apesar de agendado, é sempre remarcado, alegando-se um contratempo e, supostamente, evitado pela jovem mulher. Esse encontro de vozes desperta no leiloeiro, além da natural curiosidade, um encantamento e uma obsessão  em conhecer a imagem da dona da voz. A impossibilidade inicial gera, além desse encantamento, um apaixonamento que vai se instalando paulatinamente. Cabe dizer que o velho leiloeiro tem, ou melhor sempre teve a vida afetiva muito reduzida, pobre de relacionamentos, solitário  dedicada quase que exclusivamente ao ofício e o conhecimento das artes. É também um grande colecionador de obras de pintores famosos, possuía, especialmente, uma grande coleção de imagens de mulheres, telas de valores incalculáveis. A jovem desconhecida não tinha imagem, era apenas voz - até então, um território desconhecido do velho leiloeiro.  Imaturo para as coisas do amor, fragilizava-se ainda mais com o momento de sua vida:  envelhecia. a velhice antes era uma metáfora de seu ofício, afinal lidava com antiguidades, agora era fato e irrompia-se na paixão pela mulher misteriosa.

Tive oportunidades, em algumas ocasiões, de visitar pessoas idosas em situações precárias, expostas a doenças e a maus tratos - hoje dito, no nosso vocabulário social de “idosos em situação de vulnerabilidade”. Muitos haviam sido explorados por parentes, cuidadores   e parceiros, muitos morriam a míngua, abandonados em situações mais melancólicas do que a própria velhice havia já lhe propiciado .  Numa dessas visitas , visitei em domicílio um senhor que beirava os oitenta anos e o mobiliário da casa restringia-se a um colchão e um lençol rasgado, disposto no chão da sala. A imundície, a desumanidade e o descaso estavam ali escancarados. Uma das filhas, igualmente chocada, pois morava distante e não sabia que seu pai passava por tantas privações, acusava  a jovem parceira do idoso, com quem convivia há poucos anos . Nesse curto espaço de tempo, todo o seu folgado patrimônio  havia sido dilapidado,  toda a fortuna se evaporado. A primeira ideia que me passou, e que talvez passasse na cabeça de qualquer um que o visse naquele estado, foi a de que o velho senhor tivesse com algum tipo de demência ou de que estaria vivendo em cárcere privado. Nem uma coisa nem outra, o idoso estava lúcido e podia circular, na medida do possível, por onde bem quisesse. Pelo contrário, espantosamente dizia estar bem e  ainda queixava de nossa visita, pois não aceitava qualquer tipo de acusação à sua companheira, que, inclusive, já estava foragida. Dizia que todos nós, filhos, médicos, policiais,  tínhamos cometido um grande equívoco.     Pensei, talvez fosse preferível que pessoas que passassem por situações semelhantes a dele, utilizarem do recurso  da negação  a admitir tamanha ferida no seu orgulho. Talvez fosse preferível  cegar-se aos abusos e agressões a ter que admitir que, como um Rei Lear, que se submetera à crueldade dos seres humanos. Talvez até fosse preferível não se imaginar idoso.

Philip Roth diz que “a velhice não é uma batalha, mas um massacre”,  frase forte, pessimista e melancólica, que pode ser contestada por muitos, mas que  no caso do velho senhor que visitei e do leiloeiro do filme “A Melhor Oferta”  foi inicialmente recusada e cruelmente constatada.  

Marcos Creder


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