domingo, 16 de abril de 2017

O novo ruído de Scorsese



Conheço alguns grupos de pessoas que em feriadões ou épocas  festivas optam por se distanciar dos contatos sociais refugiando-se em retiros espirituais. Alguns, além do contato com  pessoas,   privam-se de alimentos, privam-se de palavras. Esses lugares prezam por preceitos pacifistas, valorizam a espiritualidade, e o desapego aos bens materiais e são, em sua maioria, inquestionavelmente influenciados pelas religiões e seitas orientais. Seus seguidores tratam os valores humanos e as religiões ocidentais com ar desdenhoso como se fossem irremediavelmente materialistas e violentos. O cerne dessas  filosofias orientais seria o pacifismo. Alegam  que os cristãos, apesar de pregarem a paz, foram em outros momentos da história, tiranos. Citam as fogueiras, a caça às bruxas e as máquinas de tortura da Inquisição. Eles tem razão, os cristãos  foram realmente violentos. Talvez eles deixem de ter razão quando se sentem privilegiados e diferenciados por serem orientalistas ou budistas.  Na  nossa ingenuidade, somos dados a nos  envolver e a nos  ludibriar  pelas mitologias dos panteões religiosos e  somos seduzidos e, por assim dizer, encantados pela crenças de que existe, ou que venha a existir, uma religião verdadeiramente pacífica. Cabe lembrar que as religiões são praticadas pelos seres humanos e a humanidade tem uma inquestionável história de atos de violência.


Acho que foi, pelo fato de  trazer à tona esses dissabores, que  o filme “Silêncio” de Martin Scorsese, andou à margem do cinema de premiações e de academias. Não vi nenhuma referência ao Oscar ou a Cannes - deve ter, contudo, outros motivos para esse distanciamento das luzes da indústria cinematográfica. Assisti quase que por acaso, inclusive.

O filme é longo, profundo e segue a batuta do seu título:  o silêncio e, em paralelo, o mais ruidoso dos paradoxos, revela, nas missões jesuítas pelo Oriente, especialmente no Japão  do século XVI, uma outra inquisição, a inquisição budista. Isso mesmo, a inquisição budista... e como toda inquisição religiosa, de extrema perversidade e intolerância. O que se observa no filme, em verdade, é a luta religiosa servindo como pano de fundo aos embates  frente às ameaças à hegemonia política do Oriente. Naquela ocasião, a religião se confundia e se misturava com o Estado, assim como ocorreu na Idade Média com o cristianismo e ocorre nos dias de hoje com as religiões muçulmanas.  Essa mistura, aliás, de religião com o Estado, apesar de ter sido útil ao processo civilizatório, não deixa de ser um nicho de intolerância e de perversidade.
Mas o filme vai mais além. Destaca-se, por exemplo, o quanto a crença religiosa, como detentora da “verdade”, é arrogante e impiedosa, assim como são os seres humanos donos da verdade. Deus, em paralelo, assim como no mito de Jó, revela-se no filme, com o seu incômodo silêncio. Silêncio que leva os personagens a questionarem sua fé, Deus não traz sua voz perante as injustiças, Deus não parece interceder em infortúnios, Deus pareceu ter nos abandonado, o mesmo desamparo revelado por Cristo nos últimos momentos de sua crucificação.


Enfim, Scorsese, assim como no seu polêmico e maravilhoso filme, “A Última Tentação de Cristo” traz de volta suas reflexões acerca da crença religiosa e, principalmente, do desamparo do qual todos somos submetidos, fruto da consciência de existência. Deus como disse Lars Von Trie, parece que nos abandonou como uma criança abandona por tédio, um brinquedo  ainda em movimento.

Marcos Creder   

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