domingo, 18 de dezembro de 2016

TERRA SEM LEI NA TERRA DA LEI

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Criei-me assistido filmes italianos: desde os faroestes spaghetti à commedia all'italiana, passando pelos clássicos do neo-realismo até à maturidade dos anos 70 e início dos 80 em obras de Bertolucci, Ettore Scola, Passolini, Visconte, Fellini, Antonioni, e os irmãos Vittotio e Paolo Taviani, entre outros. De meados dos anos 80 aos anos 90 o cinema italiano foi perdendo sua vitalidade criativa e artística, salvo raríssimas exceções. Contudo nos últimos tempos temos observado uma certa retomada com toques de uma nova jovialidade fílmica. Tivemos "Quarto de Filho (2001), "Os sonhadores" (2003), "A desconhecida" (2006), e mais recentemente "A Grande Beleza" (2013), "Os Nossos Meninos", "Mia Madre" (2015), "Per Amor Vostro" (2015), "La Giovinezza" (2015). Uma nova geração de diretores parece estar reinventando o cinema oriundo daquele País, com ressonância mundo afora. Paolo Sorrentino, Emanuele Crialese, Mattreo Garrone, Saverio Costanzo, são autores que vêm arrebatando festivais e prêmios com suas narrativas geralmente não convencionais. Deixem-me agora falar do roteirista de "Gomorra" (2014), Stefano Sollima, em sua estréia como diretor em "Suburra" (2015).
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Vindo da televisão e da publicidade Sollima dirige com segurança o vibrante Suburra. Suburra é fundamentalmente um filme de gângster que articula entre o submundo da política italiana, salpicando em cenários do Vaticano. Estamos frente uma roma feia, suja e má. Não há policiais ou heróis. Todo mundo é ruim e ninguém é inocente ou escapa. Em tempos de Lava-Jato torna-se ainda mais interessante. A história em tela é frenética e cheia de vitalidade e testosteronas. Mesmo em meio a tanta ruindade é sensível observarmos suas humanidades e fragilidades. Sua relevância maior é não ser condescendente com nenhum lirismo ou romantismo. Tem cara de reality show. A vida dura como ela é - ao menos por debaixo dos panos e dos vernizes sociais.
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Nos últimos dias de Berlusconi no poder (embora ele nunca seja diretamente citado) a máfia procura acelerar seus planos de aprovar uma lei que permita criar nos arredores de Roma uma espécie de Las Vegas italiana, lugar para cassinos e jogatinas legalizadas. O jogo político ali demonstrado é impregnado de corrupção e iniquidades, e o que vemos é uma verdadeira dissolução das estruturas sociais. Magnético do começo ao fim, o filme mais parece um western urbano e contemporâneo. Em um ambiente de lei (parlamento) política e crime fazem lá suas negociatas e suas transgressões. O maligno sombreia toda a narrativa marcada de assassinatos e tiros. Um olhar mais atento verificará as inúmeras alegorias e simbolismos presentes no filme, como, por exemplo, a água da chuva que escorre para os esgotos das ruas.
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Em ritmo acelerado, que nos tira a vontade até de ir ao banheiro prum xixi-break, o enredo nos leva diretamente e sem subterfúgios às entrelinhas e os subterrâneos sociais. Aqui a expressão "selva de pedra" nunca nos soou tão verossímil. Notável a performance dos atores e a química entre eles: chega a nos tirar a percepção de que aquilo é apenas atuação. Contribui não ter entre o elenco sequer um rosto minimamente conhecido.
Com fotografia de primeira e visual sofisticado, Suburra é uma viagem sujeira adentro. Roma e adjacências é transformada em um campo de batalha e deterioração ética e podridão política. A moral passa ao largo. O que chamamos de direito penal é ali o oxigênio onde respiram e vivem as pessoas retratadas como personagens. 
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A construção do edifício social muitas vezes permite oportunidades ilícitas de poder e lucro. As engrenagens do crime organizado são montadas de maneira hierarquicamente piramidal, isto é, com cabeça (chefões), corpo (gerentes), pés e mãos (executores). A ruptura da obediência é punida com a morte, e tais organizações têm suas próprias leis e até "tribunais" sumários de sentenças e penas. Embora o crime organizado normalmente não objetivar a tomada institucional do poder estatatal, fazem uso da corrupção e chantagem para comprometer agentes públicos e infiltrar pessoas diretamente ligadas às organizações criminosas. Pode-se chegar ao ponto de uma espécie de simbiose entre crime e política. E, assim criando, chegar-se ou a um poder paralelo ou ao usufruto do poder público com uma forma de guarda-sol protetor que os imunize através da impunidade suas atividades ilegítimas. Um dos mais importantes traços do crime organizado é a intimidação, principalmente através da violência e da extorsão.
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Desde que o homem é homem, e até mesmo bem antes disto, a luta pela sobrevivência se faz presente. Conjugadamente à luta pela sobrevivência também temos a luta pelo poder e pelo prazer. Sobre tais bases constrói-se o ser humano que, transcendendo o animal que somos, pode chegar à ferocidade frente a seus semelhantes. Como disse certa vez o psicanalista Lacan, "essa própria crueldade implica a humanidade". Párias sociais e outsiders por diversos motivos chegam ao extremo da perversidade como que invertendo a máxima cristã do "ame ao próximo como a ti mesmo" para "odeie o próximo como a ti mesmo". Crueldade, perversidade e destrutividade de raízes narcisistas, egoísticas e psicopáticas transbordam ao campo da ação e do comportamento. Porém, não que o mais cruel dos bandidos não tenha lá seus objetos de afeição, e isto podemos ver pontualmente em algumas cenas de Suburra.
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Embora não seja um filme para se assistir ao estilo sessão da tarde, Suburra exemplifica satisfatoriamente a fratura social que advém da perda da lógica simbólica que sustenta as instituições que, por sua vez, dão elas próprias sustentação ao que chamamos de sociedade. Quando fragmentada e/ou corrompida a ordem simbólica surge a barbárie e a violência subjacente à natureza humana. Suburra (em exibição Netflix) é um filme para se assistir com olhares de reflexão.

PS: a própria Netflix, em parceria com o canal italiano RAI, lançará em 2017 lançará série homônema em dez episódios. No aguardo.




Joaquim Cesário de Mello

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