domingo, 25 de dezembro de 2016

Paralisados

Os estudiosos em literatura costumam dizer que com uma ou duas dúzias  de  enredos  se poderia construir quase todas as narrativas  da ficção mundial. Os textos, mesmo os mais novos, são variações de temas que se repetem que trazem antigos questionamentos que vão desde  os impasses existenciais  as questões éticas e sociais. Essas narrativas modernizam ou atualizam, por assim dizer, os antigos mitos civilizatórios. Mitos como os Édipo, Prometeu, Medeia, Antígona, e vários mitos religiosos se repetem no mundo contemporâneo - pude ver, por exemplo, no filme Avatar, num ambiente completamente futurista, a repetição do mito de Moisés, tão difundido entre os judeus. Esses mitos são retratos alegóricos de nossas condições, que quando passam por um trabalho estético transformam-se em obra literária. Não confundamos essas reedições com o plágio que é a repetição reduzida da narrativa e  do próprio elemento estético. A boa obra de arte, em geral, repete o mito e tenta acrescentar-lhe algo que o dá uma originalidade.


Esse é o caso de  “Enclausurado”,  um enxuto e belo texto de  Ian McEwan que, já com domínio e maturidade suficientes na escrita, arrisca em escrever a fantástica história narrada por uma criança, ainda no ambiente do útero materno. O texto repete um mito conhecido. Vejamos. A mãe do personagem trama com o tio o  seu abandono após o nascimento, e o assassinato do seu pai. Que história é essa? fácil: o enredo  literário ou dramático de Hamlet, na escrita de Shakespeare - cabe lembrar que Hamlet não é uma invenção shakesperiana, Hamlet  é um mito antiquíssimo de  tradição escandinava. Shakespeare  o transcreveu poeticamente e deu poder de arte a essa lenda de tradição oral. Com isso,  a peça teatral tornou-se uma obra-prima e perpetua-se como referência de perfeição  na literatura mundial. Harold Bloom, crítico americano aficionado por Shakespeare, eleva essa peça  a condição de obra canônica,  que, segundo ele, divide a antiga da moderna literatura.  Bloom não exagera, pois no patamar  de shakespeare só  se encontram Cervantes ou Dante, igualmente obras canônicas..  


Hamlet é um texto que suscita várias discussões mas aqui preferi dar destaque a um aspecto singular, sempre lembrado pelos psicanalistas, que trata da barreira da dúvida que paralisa o personagem principal. Dessa barreira, Hamlet  constrói os seus sintomas e, mais amplamente, a nossa condição, a nossa incerteza e a nossa impotência a vicissitude da condição humana está justamente em paralisar-se,   sobrepondo dúvidas as nossas certezas (as famosas dúvidas shakesperianas) . O desejo de vingar a morte do pai paralisa nessa incerteza, Hamlet em suas elucubrações,  sai melancolicamente em busca da verdade, jamais encontrada.


No romance de Iam Mcewan o personagem não dúvida, a personagem tem plena convicção da trama assassina, no entanto, por outra razão, se mantém paralisado e passivo à possíveis crueldades que estarão por vir. McEwan, por assim dizer, naturaliza ou biologiza essa nossa impotência. É a parede  uterina  e o temor a imagem materna que o pressiona para a passividade.


McEwan assim como Shakespeare nos mostra o óbvio - coisa muito difícil de se constatar. Somos emparedados pela nossa condição. Independente de sabermos ou não a nossa capacidade reativa, a nossa capacidade de mobilidade é muito mais restritas do que imaginamos.   Somos menores do que imaginamos. Nossas palavras e nossos atos podem ser previsíveis, oraculares ou predestinadas, mas somos incapazes de reverter situações tão complicadas da subjetividade humana.


Escrevi, faz mais de 15 anos, um conto em que o personagem principal, um escritor falecido, deixa cartas que são enviadas misteriosamente, pos mortem aos seus entes queridos. Nessas cartas, o escritor prevê o futuro sem a sua existência, prevê inclusive, o novo casamento  de sua mulher, a viúva Rita, com seu irmão,  fato que causa sofrimento a todos, inclusive, ao falecido. O personagem do conto, fantasticamente visionário, traz, do mesmo modo que  os personagens de Shakespeare ou McEwan (naturalmente), guardando as devidas proporções), a constatação de arbitramos pouco pela vida. nessa perspectiva somos praticamente desprovidos de livre arbítrio. Embora tenhamos a ação e a palavra de nosso lado, pronto para uma transformação, as incertezas e as contingências vem em nossa direção a nos sucatear.  


Marcos Creder 

Nenhum comentário: