Que seja incerto enquanto dure.
"Na duvida, ninguém desespera" (JACOBSEN, Jens Peter. 2003, p. 65).
A primeira vez que li essa frase fiquei estarrecida com tamanha absurdidade, pois era comum a mim se corroer entre as diversas dúvidas. Não a aceitei e rapidamente a rejeitei, no entanto, ela volta e meia retornava aos meus pensamentos. Demorou até que eu começasse a ter uma nova postura sobre ela e talvez tenha começado a me aproximar do sentido do autor. Hoje essa frase faz parte do meu vocabulário para entender as coisas do dia a dia.
"Na dúvida, ninguém desespera" retrata, na minha opinião, a existência do homem livre, do homem que é responsável pela construção do seu projeto de vida. Essa citação revela a pluralidade da vida e o quanto para nós é necessário e imprescindível realizar escolhas. Em uma aula na faculdade sobre saúde mental comentei dessa frase e disse que para mim, a doença mental, era a impossibilidade de realizar escolhas. Comentei que acreditava que o sujeito adoecia quando se via sem alternativas para trilhar o seu viver. Era a certeza irremediável que levava a pessoa a enlouquecer. Enquanto houvessem saídas, possibilidades, o sujeito teria perspectivas, mas quando se percebia encerrado em uma situação, perdia-se.
Na dúvida, ninguém desespera, pois a dúvida indica que existem oportunidades de mudanças e mudanças são chances de crescimento. Eu sei o quanto nossas dúvidas podem causar desconfortos. Eu sei que a dúvida remói o ser e nos machuca quando é provocadora demais. Também sei que a dúvida pode nos paralisar. Contudo, na dúvida padecemos do mistério que há no além de cada decisão. Sentimos, na dúvida, o medo do não saber o que virá depois e também o medo de perder o que já é. Isso tudo nos mostra que temos um caminho a perseguir, uma história para escrever. Na dúvida temos medo da nossa capacidade de realizar as coisas e da imprevisibilidade dos fatos que independem da nossa vontade e desejo.
Penso agora numa analogia que é bem simples, mas acredito que engloba bem o que venho falando. Imagine que a vida são as estradas, ruas e vielas de uma cidade. Nós temos que percorrê-las sempre em frente, sempre em caminhos que nunca percorremos, pois, não dá para voltar, já que a medida que andamos o percurso percorrido se apaga atrás de nós. Às vezes encontramos lugares parecidos com outros visitados, mas nunca são os mesmos. Enfim, passamos o tempo todo caminhando, entrando em ruas, becos, estradas e a cada passo não sabemos muito bem o que vamos encontrar a frente, mas enquanto há estrada estamos caminhando. Algumas são mais preservadas que outras, existem umas mais estreitas, outras com esgoto a céu aberto, ruas de barro, estradas esburacadas e sei lá mais o quê. Temos medo a cada esquina, pois não sabemos o que iremos encontrar. Alguns são mais audaciosos que outros, mas volta e meia se questionam sobre qual caminho percorrer. Outros não querem seguir, mas precisam pois não dá pra ficar parado. Até que de repente, dobra-se uma rua e se encontra sem saída. Não há para onde ir. O caminho vem se desmanchando aos seus pés. Que desesperador deve ser perceber que tudo está ruindo e que não se vê para onde ir.
A certeza é fim. A dúvida é o anúncio de um começo. "Só quando a última porta se fecha à nossa frente é que se cravam em nosso peito as geladas garras da certeza, que pouco a pouco penetram, já dentro do nosso coração, a finíssima teia da esperança da qual pende a nossa felicidade. Então rasgam-se os fios dessa teia, então cai e só então é destruído o que eles antes sustentavam, e então ecoa agudo pelo espaço o grito de desespero." (JACOBSEN, Jens Peter. 2003, p. 65). Aqui o autor fala da esperança e do quanto ela é alimento para nossas paixões e anseios, do quanto a nossa felicidade se apoia nessa fina teia chamada esperança. Na dúvida, ninguém des-espera. Há na dúvida a esperança por algo que ainda não se sabe o quê, mas se espera, por mais incerto que seja. Ninguém des-espera enquanto ainda há dúvida sobre o que há pra ser.
Com isso recomendo o conselho do poeta Rilke (2001), "Sua dúvida pode tornar-se uma qualidade se o senhor a educar. Deve-se transformar em saber, em crítica. Cada vez que ela lhe quiser estragar uma coisa, pergunte-lhe por que aquilo é feio. Peça-lhe provas, examine-a; talvez a ache indecisa e embaraçada, talvez revoltada. Mas não ceda, exija argumentos. Ponha-se a agir assim, atenta e consequentemente, cada vez, e dia virá em que, de destruidora, ela se tornará sua melhor colaboradora, talvez a mais sábia de quantas que cooperam na construção de sua vida" (p.74).
Referências:
JACOBSEN, Jens Peter. Niels Lyhne. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta e A canção de amor e morte do porta-standarte Cristovão Rilke. São Paulo: Globo, 2001.
Andreza Crispim
Um comentário:
Um dos meus textos prediletos.
Postar um comentário