domingo, 23 de agosto de 2015

Peregrinos


Há um relato comum quando se fala do comportamento dos loucos de que, entre os seus principais sintomas, estaria o impulso de andar pelo mundo  afora,  sem destino. A narrativa mais usual é de que o sujeito após ter enlouquecido, ou estar em vias de enlouquecer, tomaria o prumo do caminho sem rumo onde, muitas vezes, se perderia para sempre.

Se se tomar um manual  de Psicopatologia Geral haverá uma indicação, uma terminologia  para isso, o chamado e pouco conhecido fenômeno da poriomania, que seria exatamente esse andar impulsivo. Muitas vezes esse andarilho poriomaníaco tem sintomas psicóticos, ou seja delírios e alucinações, e sua jornada de caminhadas está invariavelmente invadida também por percursos imaginativos – ouvi de um usuário o relato de que teria andado e nadado até Moscou.  

Caminhar na verdade está no imaginário humano representado pela ideia de reflexão e de transformação. Caminhar é um ato e uma metáfora, e a metáfora suscita o ato, o precede. Utilizamos muitas vezes a decisão de se distanciar,  em viagens e fazer, por exemplo, no turismo – uma moderna peregrinação – pequenas ou significativas reconstruções subjetiva. Os antigos peregrinos faziam do ato de caminhar uma espécie de percurso de reflexão espiritualizada que envolvia a purificação e a expiação.  Muitas “revelações" bíblicas ocorreram em viagens ou caminhadas: caminhadas de Cristo no deserto, de Paulo no caminho de Damasco, além, obviamente, da fuga do povo hebreu do Egito guiado por Moisés. Muitos não religiosos, contudo, em diversos momentos da história,  ao viajar trouxeram na bagagem não somente sentimentos míticos,  mas algo transcendente, ou "revelações", se assim posso chamar, científicas – um exemplo disso está nas viagens de Charles Darwin ou de Levi Strauss aos trópicos. Conta-se, por exemplo, de Michel de Montaigne teria escrito alguns capítulos dos seus Ensaios inspirados em viagens que teria feito.

Viajar e caminhar, na atualidade aglutinou não só essa tradição do humano, mas acrescentou uma verdadeira indústria do turismo de caminhadas aventureiras e de  peregrinações. Hoje se é capaz de encontrar pacotes turísticos para o caminho de Santiago de Compostela, para alguma trilha peruana em Machu Picchu – até mesmo no Brasil já se desenha algumas trilhas semelhantes; o caminho da estrada Real, o caminho de Santo Amaro, além das tradicionais peregrinações em santuários religiosos. Mas há também os, cada vez mais na moda, santuários ecológicos, onde do mesmo modo que o religioso, desafia-se com longas e perigosas caminhadas e procura-se as mesmas soluções das caminhadas religiosas. No recente filme “Livre” (Wild), a personagem faz essa mesma expiação que faria um peregrino à Terra Santa. Contudo, uma expiação contemporânea. O filme narra a história de uma jovem mulher que entra no desafio de caminhar por mais de mil quilômetros no extremo oeste americano , na trilha de Pacific Crest Trail – PCT, que vai do sul dos Estados Unidos, na fronteira do México,  até a fronteira do Canadá. Nele, a personagem revisita, no caminhar,  parte do seu tumultuado passado. A cada passo pra frente, paradoxalmente, caminha-se no sentido oposto das recordações. Será que sempre fomos assim?


Se não somos mais nômades territoriais, tentamos ser nômades pelo menos em consciência.  Os nossos ancestrais eram andarilhos contumazes,  tinham não apenas o capricho, mas necessidade de caminhar a procura de alimentos. O mundo humano, nesses tempos primordiais, parece ser renovado a cada paisagem. Nossos ancestrais,  no entanto, dava pouca importância as recordações, elas passaram a ser importantes quando não éramos mais nômades. O ato de recordar passou a ter relevância quando começamos a mitificar a nossa história, a narrar experiências, muitas vezes não acontecidas. E no impulso de andar misturar-se o ato de recordar e transformar. Desse modo, ao caminhar por uma longa e tortuosa trilha, vem a mente as experiências vividas.  No fim do percurso, no triunfo, enfim, as nossas recordações terão um sem número de novas paisagens.

Marcos Creder.


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