Há
um relato comum quando se fala do comportamento dos loucos de que, entre os
seus principais sintomas, estaria o impulso de andar pelo mundo afora,
sem destino. A narrativa mais usual é de que o sujeito após ter
enlouquecido, ou estar em vias de enlouquecer, tomaria o prumo do caminho sem
rumo onde, muitas vezes, se perderia para sempre.
Se
se tomar um manual de Psicopatologia Geral
haverá uma indicação, uma terminologia para isso, o chamado e pouco conhecido fenômeno
da poriomania, que seria exatamente esse andar impulsivo. Muitas vezes esse
andarilho poriomaníaco tem sintomas psicóticos, ou seja delírios e alucinações, e sua
jornada de caminhadas está invariavelmente invadida também por percursos
imaginativos – ouvi de um usuário o relato de que teria andado e nadado até Moscou.
Caminhar
na verdade está no imaginário humano representado pela ideia de reflexão e de transformação.
Caminhar é um ato e uma metáfora, e a metáfora suscita o ato, o precede. Utilizamos
muitas vezes a decisão de se distanciar,
em viagens e fazer, por exemplo, no turismo – uma moderna peregrinação –
pequenas ou significativas reconstruções subjetiva. Os antigos peregrinos
faziam do ato de caminhar uma espécie de percurso de reflexão espiritualizada
que envolvia a purificação e a expiação.
Muitas “revelações" bíblicas ocorreram em viagens ou caminhadas: caminhadas
de Cristo no deserto, de Paulo no caminho de Damasco, além, obviamente, da
fuga do povo hebreu do Egito guiado por Moisés. Muitos não religiosos, contudo,
em diversos momentos da história, ao
viajar trouxeram na bagagem não somente sentimentos míticos, mas algo transcendente, ou "revelações",
se assim posso chamar, científicas – um exemplo disso está nas viagens de
Charles Darwin ou de Levi Strauss aos trópicos. Conta-se, por exemplo, de
Michel de Montaigne teria escrito alguns capítulos dos seus Ensaios inspirados
em viagens que teria feito.
Viajar
e caminhar, na atualidade aglutinou não só essa tradição do humano, mas
acrescentou uma verdadeira indústria do turismo de caminhadas aventureiras e de peregrinações. Hoje se é capaz de encontrar
pacotes turísticos para o caminho de Santiago de Compostela, para alguma trilha
peruana em Machu Picchu – até mesmo no Brasil já se desenha algumas trilhas
semelhantes; o caminho da estrada Real, o caminho de Santo Amaro, além das
tradicionais peregrinações em santuários religiosos. Mas há também os, cada vez mais na moda, santuários ecológicos, onde do mesmo modo que o religioso, desafia-se com longas
e perigosas caminhadas e procura-se as mesmas soluções das caminhadas religiosas.
No recente filme “Livre” (Wild), a personagem faz essa mesma expiação que faria
um peregrino à Terra Santa. Contudo, uma expiação contemporânea. O filme narra
a história de uma jovem mulher que entra no desafio de caminhar por mais de mil quilômetros
no extremo oeste americano , na trilha de Pacific Crest Trail – PCT, que vai do
sul dos Estados Unidos, na fronteira do México, até a fronteira do Canadá. Nele, a personagem
revisita, no caminhar, parte do seu
tumultuado passado. A cada passo pra frente, paradoxalmente, caminha-se no sentido oposto das
recordações. Será que sempre fomos assim?
Se não
somos mais nômades territoriais, tentamos ser nômades pelo menos em consciência.
Os nossos ancestrais eram andarilhos contumazes, tinham não apenas o capricho, mas necessidade
de caminhar a procura de alimentos. O mundo humano, nesses tempos primordiais,
parece ser renovado a cada paisagem. Nossos ancestrais, no entanto, dava pouca importância as recordações,
elas passaram a ser importantes quando não éramos mais nômades. O ato de
recordar passou a ter relevância quando começamos a mitificar a nossa história,
a narrar experiências, muitas vezes não acontecidas. E no impulso de andar misturar-se
o ato de recordar e transformar. Desse modo, ao caminhar por uma longa e
tortuosa trilha, vem a mente as experiências vividas. No fim do percurso, no triunfo, enfim, as nossas recordações terão um sem número de
novas paisagens.
Marcos
Creder.
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