sexta-feira, 13 de setembro de 2013

VALE A PENA VER DE NOVO


A FANTASIA E SUAS VERDADES



Uma apreensão freqüente entre os que estão iniciando as primeiras entrevistas com pacientes psiquiátricos psicóticos (esquizofrênicos, paranóicos e, eventualmente, portadores de transtorno bipolar do humor) ou até mesmo em psicoterapias de quadros de menor gravidade clínica, é saber se o que os pacientes dizem faz parte da realidade ou da “fantasia”. Isso me fez lembrar uma ocasião em que entrevistava um paciente numa emergência e o familiar me advertiu para que eu não “desse ouvidos a ele, pois, ultimamente, só vinha contando mentiras as pessoas”. As mentiras eram os delírios. Essa discussão entre verdadeiro e falso, fato e mentira ou verídico e fantasioso, realmente merece atenção, mas não sejamos cartesianos, tão racionalistas por verdades absolutas e do mesmo modo que no encontro com o cliente, não teremos, aqui, respostas prontas e lineares. As contas do tempo, do espaço e da vivência da experiência da vida humana segue uma métrica bem diferenciada, em que o somatório de dois mais dois dificilmente será quatro.

Há uma frase do dramaturgo Nelson Rodrigues que diz que “não há nada mais falso do que uma entrevista verdadeira”. Na ocasião, Nelson se referia as entrevistas formais em que o entrevistado tinha que ser educado, diplomático e, como envolvia um sem número de leitores ou ouvintes, teriam que dar respostas vagas e insinceras. Pode-se aventar, aqui nesse artigo, que essa suposta insinceridade ocorreria em maior ou menor grau nas situações das narrativas nas psicoterapias ou análises, mesmo que se revele “verdades” e “fatos” que só poderiam ser revelados nesse setting. Freud, inclusive, levando em consideração essas “derrapagens” do discurso recomendava que, em análise, era-lhe mais importante a realidade psíquica do que as factuais – quando essas eram trazidas por familiares, por exemplo. Segundo seu pensamento o “trauma” de fantasia teria o mesmo vigor que um “trauma” de realidade. O “trauma” de fantasia teria elementos e implicações mais significantes para a construção do que chamou de neurose – falarei mais adiante, voltemos a Nelson Rodrigues.

 Essa tentativa de relacionar o texto desse dramaturgo com a psicanálise é muitas vezes criticada devido ao próprio ceticismo que Nelson tinha em relação à psicanálise. Há uma frase famosa que diz: “o psicanalista é uma comadre bem paga”, que apesar de soar como uma brincadeira – provavelmente destinada ao amigo e psicanalista Hélio Pellegrino –  certamente destacava o tom jocoso com a teoria freudiana.  Também participava do seu discurso irônico, a personagem descrita nas crônicas publicadas no Jornal o Globo que se chamava  “A Estudante de Psicologia da PUC” – uma jovenzinha – como denominou, “culta e politizada” – com idéias radicais que iam desde ideologias radicais revolucionárias à psicanálise ortodoxa. 

Na verdade, se observarmos com mais minúcia, o leitmotiv psicanalítico encontra-se, paradoxalmente, em toda a tragédia de Nelson Rodrigues. Peças, Álbum de Família, Vestido de Noiva, Beijo no Asfalto, Dorotéia, entre outras, trazem temas que provavelmente seriam raros antes da introdução do saber freudiano: transgressões, desejos recalcados e incestuosos, ideias de culpa e castração. Para se ter um exemplo, a peça Vestido de Noiva, que na ocasião revolucionou o teatro brasileiro, tem o cenário montado em três planos: da alucinação, da realidade e da memória, três planos que lembram bem os elementos de parte da metapsicologia freudiana: inconsciente, consciente, pré-consciente.  Valéria de Juliano – tradutora da peça para o idioma italiano – cita que incontestavelmente a peça “sofreu forte influência da psicanálise da primeira metade do século XX”. E o que fazia de Nelson tão opositor ou provocador? Parece que o incômodo do dramaturgo era essencialmente a visão caricata e esteriotipada com que as pessoas aderiam a novas formas de conhecimento. Estas visões lineares, doutrinárias, muitas vezes, contribuíam na banalização ou na simplificação de teorias bem mais complexas, fato que se observou e ainda se observa na difusão da psicanálise.  Uma vez soube de um roteiro de entrevista “psicanalítico” onde se fazia uma espécie de anamnese, na tentativa de “estruturar” o discurso do paciente. Nesse questionário teria várias perguntas, algumas bem surpreendentes, como: você já odiou seu pai? Já gostou de sua mãe? Já se sentiu castrado? Sente-se recalcado? Tem algum complexo?... Ora, se a psicanálise se inspira no conceito de livre associação onde o cliente-paciente pode e deve falar livremente o que ocorre a cabeça, como podemos fazer um roteiro de entrevista? Além do mas, com perguntas tão absurdas, só se teria respostas absurdas – voltamos à frase de Nelson Rodrigues: “nada mais falso que uma entrevista verdadeira”.
Em psicanálise, sabe-se, desde o início, que os discursos, por mais francos que sejam, não são tão verdadeiros, e o que se busca não são fatos ou os “traumas” que ocorreram na história de um sujeito, mas tenta  se investigar  “traumas” – narrados espontaneamente –  que não ocorreram, mas que de algum modo se imaginou terem ocorridos, “traumas” que se denominou de “traumas de fantasias”. Se é de fantasia que importância teria?  Ou que sentido tem em se fantasiar? Voltemos a Nelson Rodrigues.
Num pequeno romance, “A Mentira”, vários personagens trazem à tona seus desejos após a revelação de um acontecimento que envolveu a adolescente, a filha mais jovem da família. Atribuindo-lhe uma gravidez precoce, o transcorrer do texto vai desencadeando entre os familiares, pai, irmãs, mãe, cunhados, o desvelamento de várias “verdades”, antes jamais ditas ou sequer pensadas: desejos incestuosos, transgressores, perversos, enganos, ressentimentos, revelações de traições.  No final do texto, um equivoco ou uma mentira é trazida à tona – enfim, era fruto de uma fantasia, mas essa fantasia não desfez toda série de revelações.
Com esse texto podemos pensar que em todo sujeito algumas fantasias estão sustentando vários desejos ainda não revelados ou ainda desconhecidos  e esses desejos vão constituir a própria ideia de fantasia. O que seria então a fantasia? “Uma fantasia é apenas o produto e a máscara das manifestações espontâneas do desejo” (Laplanche & Pontalis). No romance de Nelson a partir de uma relação equivocada, desencadeou-se uma sucessão de desejos. Do mesmo modo, podemos fazer uma reflexão na ocasião em que atendemos alguém, quando seus delírios, por mais absurdos que sejam, vem à tona. Aquelas “mentiras” (como disse o familiar) estão a serviço de uma trama de desejos e de “verdades”. Obviamente que não devemos fazer do delírio um fato, o que seria um erro técnico, mas saber que nele vem carregado um sem número de vivências do paciente.

Originariamente publicado em 16/09/2012
                                                                                                                                          Marcos Creder

Nenhum comentário: