Aonde o vazio persistente, contínuo e crônico na alma humana pode nos levar? Ao sofrimento psíquico e existencial, é claro. Sofrimentos advindos do vazio interno muitas vezes tendem a gerar a condição borderline de ser. Convencionou-se chamar de borderlie esse estado anímico entre a sanidade e a loucura. Não a loucura psicótica propriamente dita, mas uma espécie de loucura característica de alterações comportamentais graves e de afetos pueris encontrados muitas vezes na adolescência - o que o médico alemão Kahlbaum, no século XIX, denominava de "loucura juvenil propriamente dita". Em 1890 ele publica "Sobre a Heboidofrenia", para ele uma espécie branda de hebefrenia caracterizada por comportamentos anormais e distúrbios da moralidade, com alterações na esfera do social e da personalidade. Um adolescente hebóide é aquele que, sob um olhar ingênuo e superficial, é confundido como mal-educado, um jovem com flutuações de humor e do comportamento, que ficam facilmente irritados. Oscilam em espaços curtos entre a melancolia e a expansividade.
A impulsividade sem mensuração das consequências, a imprevisibilidade do humor e a acentuada instabilidade afetiva são algumas das marcas de uma personalidade organizadamente borderline. Mas uma delas quero destacar: o sentimento crônico de vazio. O humor, os pensamentos e as ideias, as emoções e os sentimentos oscilam, vêm e vão; já o que parece permanente, como que uma tatuagem colada ao corpo, é o vazio. Rola na internet a seguinte frase atribuída a Roseli Santana: "presa em meu vazio o silêncio ecoa na solidão". Pois é, é um sentimento intenso de vazio que dói e tortura peito a dentro até o "osso da alma", vazio este cujo preenchimento é muitas vezes buscado desesperadamente em excesso vários, tais como: bebidas alcoólicas, drogas, sexo, consumo e compras. Angústia, depressão, ansiedade e vazio, portanto, são sentires bastante conhecidos por quem sofre de transtorno borderline de personalidade.
Estudos diversos apontam para uma prevalência estimada entre 2 a 3% aproximadamente da população geral preenchem critérios diagnósticos compatíveis com o transtorno borderline. Dependendo dos critérios utilizados há estudos que apontam até cerca de 10%. E de onde brota tamanho vazio? Conhecendo-se a história pregressa de um adulto borderline encontramos quase invariavelmente forte sentimentos interiores de abandono e desamparo. De tais sentimentos, por sua vez, surgem a angústia, a ansiedade e a depressão.
O mundo interno borderline é caótico, confuso e vazio. Estamos no âmbito das primeiras identificações que faz a alma humana: as identificações primárias. Na imaturidade do ego inicial seus objetos cuidadores são frequentemente negligentes e/ou abusadores, falhando em dar proteção necessária a um ego frágil e em formação. Estimulações e resposta inadequadas por parte desses objetos colocam o incipiente ego em sobrecarga emocional cujas defesas acionadas são primitivas e, mais adiante, predominantemente utilizadas. Psicodinamicamente falando o manejo egóico de defesas primitivas dá o caráter "psicótico" de personalidade não necessariamente psicótica. Podemos até dizer que tais carências orais infantis levam o sujeito a uma eterna busca por uma simbiose materno-filial. Em outras palavras, a insuficiência de uma relação simbiótica em um período desenvolvimental simbiótico normal (vide Margaret Mahler) mantém o self borderline como que preso ou fixado em tais necessidades narcisistas (provenientes de escassez afetiva sistemática, negligência contínua e abandonos frequentes), prejudicando assim o desprendimento evolutivo. Travado em sua "falta básica" (vide Balint) o sujeito tem, assim, dificuldade em sair desse nó simbiótico.
Uma personalidade assim fundada na frustração da relação matricial gera em seu âmago fomes insaciáveis: fome por estímulos e fome de agarramento e aproximação simbiótica. Isto nos leva então, a melhor compreender o porque de tantas relações afetivas intensas, problemáticas e disruptivas. Tal volubilidade manifesta-se no constante apaixonar-se e desapaixonar-se. Vive-se, assim, na corda bamba da instabilidade tanto emocional quanto afetiva. Disforia episódica intensa, irritabilidade, tédio, pânico ou desespero, mudanças bruscas e dramáticas são uma constante na vida de uma personalidade borderline.
A carência é a origem dos nossos desejos. Os gregos da Antiguidade já sabiam disto. Na mitologia a mãe de Eros (desejo) é a Penúria (falta). A insuficiência é fósforo que aciona a pólvora e logo vem a explosão. No psiquismo o objeto primário interno é clivado, perdendo dessa maneira a sua continuidade afetiva como defesa à ansiedade e à angústia de viver e existir. Assim exposto, sem a defesa básica, o self borderline vivencia perto demais a angústia da morte e do desaparecimento, com reflexos em seu comportamento impregnadamente instável e muitas vezes autodestrutivo.
O sentimento crônico de vazio, portanto, tem nome: desamparo psíquico. Houve uma ausência de internalização de uma relação de apego seguro com seus objetos primários e primordiais. O vínculo afetivo e amparador inexistiu ou foi bastante insuficiente, gerando um comprometimento significativo no desenvolvimento da capacidade de autocontrole e autoproteção. A construção psíquica do sujeito lastreou-se em base fortemente frágeis, assim formando um self vulnerável e com poucos recursos egóicos para lidar com a frustração e a ansiedade. É frequente se processar internamente uma espécie de "anestesia emocional" o que, por sua vez, justifica a sensação vivida de uma depressão sem tristeza. Trata-se de um sujeito sofrente que nem sequer pode "matar" os pais dentro de si, pois sequer há pais a serem "matados". E vazio não se mata, nem se preenche. O que se pode é aprender a conviver com ele. Difícil.
O binômio vazio-solidão é expressado em uma constante melancolia silenciosa que parece não ter fim. Uma depressão sem culpa, uma depressão anaclítica, típica de pessoa com tendência dependente e com sentimento de medo do abandono. A autodestrutividade tão visível no comportamento border (que inclui promiscuidade sexual, uso abusivo de drogas, perversão, mutilação e tentativas de suicídio) tem com base ou pano de fundo uma frusta e desesperada tentativa tresloucada de fugir dos sentimentos excessivamente dolorosos de abandono e desamparo.
É grave o transtorno borderline de uma personalidade. Não basta a utilização terapêutica de psicofármacos. É necessário uma relação psicoterápica estável, compreensiva, firme, protetora e segura. Uma rara chance de poder internalizar um objeto relacional significativo e de apego. Todavia é preciso antes formar um apego com este objeto (terapeuta) que, por sua vez, deve ser capaz de tolerar em si os ataques a ele dirigidos que só é possível no exercício de uma função continente. O manejo e a abordagem psicoterápica é, pois, uma outra história a ser contada, uma história que é uma continuidade de uma história que não se fez por ter sido interrompida desde cedo em seu nascedouro. Se vocês quiserem posso contá-la em outro post. Se quiserem...
Joaquim Cesário de Mello
6 comentários:
Texto inteligente, esclarecedor, que se comunica bem com iniciados e iniciantes em desvendar os recantos da alma, que às vezes (?)clama por ser iluminada...
Um texto excelente que sintetiza muito bem ao leitor como se configura o processo terapeutico comva personalidade Boderline.
Obrigada pelos dois textos, me deram uma luz. Minha esposa descobriu ser borderline recentemente mas ainda não conseguiu acertar no terapeuta. Acredita que haveria uma linha mais indicada do que outra para este tratamento? Ou seria mais uma questão de continuar procurando novos terapeutas até acertar?
Psicoterapia é interpessoalidade, isto é, sua eficácia depende do vínculo a ser construído e estabelecido entre a pessoa do psicoterapeuta e a pessoa do cliente. Mais importante do que a técnica empregada é a relação entre ambos e isto dependerá de vários fatores, entre eles, a personalidade e a experiência (profissional e de vida) do terapeuta, a empatia e o calor humano da aliança terapêutica e do rapport, do momento histórico do paciente e de sua motivação, etc. Em síntese diria que uma determinada relação com determinado profissional pode dar "liga" e outra não. Vale a pena continuar tentando. Caso queira melhores informações pode me ligar (o número do telefona encontra-se no lado direito do presente blog. Joaquim Cesário.
Joaquim, é possível uma relação com a função materna ser tão simbiótica ao ponto de até os 30 anos dormir na mesma cama com a mãe e ter o diagnóstico de Bordeline? Desde já agradeço
Mais importante primeiro é melhor observar a qualidade da relação pessoa e mãe. Dormir juntos isoladamente soa apenas como detalhe. Um quadro de personalidade organizada de maneira borde é amplo, e nem sempre deve-se resumir o diagnóstico a pressa em fazê-lo.
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