A alma humana é como água, não tem cheiro, não tem cor e
nem tem gosto. A alma talvez nem exista de fato, seja pura abstração: uma
imaterialidade criada pelo funcionamento do cérebro. A alma, enquanto mente,
não ocupa um lugar físico e espacial. Quem ocupa espaço é o corpo. Mas nosso
psiquismo tem substância, e a substância mental é constituída de pensamentos,
sentimentos e emoções. E tal substância, impalpável, porém viva, encontra-se
fincada em um substrato neurofisiológico. É como se fosse os dois lados de uma
mesma moeda: o objetivo e o subjetivo. Não há mente fora do cérebro, mas a
mente não é o cérebro. Ambos compõem, assim, um todo sistêmico complexo e
interativo, onde tanto o cérebro influencia a mente quanto a mente o cérebro.
Vejamos, então, a questão da
distimia. O transtorno distímico é um tipo de depressão que se caracteriza pela
diminuição do prazer com a vida e com a continuada permanência de pensamentos e
sentimentos negativos. Embora seja uma depressão mais leve, pois não
impossibilita a pessoa de suas tarefas, compromissos e funções, ela é constante e
seus sintomas se arrastam por mais de dois anos. Neste sentido, a distimia é
uma depressão de caráter crônico.
Mais do que somente um transtorno, a
distimia é uma forma de perceber, interpretar e sentir a realidade de um modo melancólico
e triste. Faz parte do dia-a-dia a desmotivação, a negatividade, a diminuição
de energia, a baixa autoestima, o mau humor e a irritabilidade. A continuidade
e persistência dos sintomas, principalmente ao longo dos anos, vão se
misturando a personalidade a ponto de o indivíduo construir a noção de si como
alguém “normalmente” tristonho, desanimado e sem alegria. Pode-se, assim,
chegar à cultura depressiva, isto é, hábitos, costumes, comportamentos e
rotinas depressivas ou alimentadoras de depressão.
Pessoas distímicas
frequentemente são mau humoradas, mas é um mau humor com “L”, isto é, um mal do
humor. Vivem amargas e azedas, sendo facilmente irritadiças e podendo se
exasperar por mínimas coisas. Impacientes e irritáveis, são tão acostumadas a
se sentirem assim que chegam até afirmar “sempre fui assim”, “é da minha
natureza”, ou algo parecido. Trata-se de uma distorção alimentada pelos anos em
que convivem com as perturbações do humor. Lembremos que muitas vezes insidiosamente a distimia
se inicia cedo na vida, desde a infância ou adolescência, ou ainda no começar
da vida adulta.
A depressão
pode ter sua raiz no cérebro, mas a mente humana, por sua vez, pode alimentar a
mesma. O cérebro “acredita” na mente, e se ela rumina pensamentos e ideias
negativas o cérebro continua a responder como se o mundo externo fosse somente
ruim, hostil e gerador de infelicidades. Desse modo,
uma pessoa acostumadamente depressiva lida com o mundo e a vida de maneira
depressiva, mantendo, assim, a perpetuação do desequilíbrio entre os fatores
patogênicos e salutogênicos de sua ontogenia.
Nossas experiências subjetivas e
comportamentais têm influencia sobre o corpo e o cérebro mais especificamente. Lembremos
que nosso cérebro hoje, por exemplo, é consequência de um longo processo
evolutivo da espécie. Somos originados de modificações adaptativas do organismo
frente ao ambiente com fins de sobrevivência. O cérebro e a mente humana evoluíram
mutuamente e mutuamente se interinfluenciando. A equação mente-cérebro compõe o todo humano, e dentro do princípio do
interacionismo tanto o cérebro influencia a mente quanto a mente o cérebro. Processos
neurofisiológicos e processos mentais são como duas linguagens distintas
descrevendo os mesmos fenômenos. Porém, a intrínseca relação entre mente e
cérebro ainda nos é um “enigma da esfinge”, embora nos últimos tempos termos
avançado significativamente mistério adentro.
Pessoas deprimidas,
principalmente as de longo prazo, tendem a estruturar suas experiências muitas
vezes com base em interpretações equivocadas e negativas no tocante ao seu
desempenho pessoal e profissional. Cognitivamente apresentam abstração seletiva,
isto é inclinação a evidenciar o mau desempenho e menosprezar o bom. Assim, a
depressão prolongada leva o indivíduo a um circulo vicioso onde o retraimento
pessoal ante atividades prazerosas, salutares e positivas incrementam e servem
como mantenedores do estado depressivo contínuo. Lembremos ainda, e mais uma
vez, que uma pessoa deprimida pensa depressivamente, isto é, seu filtro entre o
que pensa de si mesmo e o que pensa do mundo e da vida é acinzentado. E também
sabemos, inclusive na pele, que pensamentos geram sentimentos, bem como
sentimentos igualmente procriam pensamentos.
O cultivo de hábitos e rotinas
depressivas é egosintônico, pois foi se construindo gradualmente e
conjuntamente a distimia ou a depressão prolongada. Dormir e acordar muito tarde,
vedar a janela do quarto com cortinas, ficar muito tempo na cama, viver
sedentariamente, comer mal e desordenadamente, adorar ler e assistir filmes
melancólicos, não ter hobbies, realizar atividades solitárias, o uso abusivo de álcool, cigarro ou outras drogas, entre outros,
são exemplos do que estamos falando.
Desta
forma, portanto, fica-se mais visível o que certa vez escreveu o poeta e
escritor Charles Bukowski:
“Andava com mania de suicídio e com
crises de depressão aguda; não suportava ajuntamentos perto de mim e, acima de
tudo, não tolerava entrar em fila comprida pra esperar seja lá o que fosse. E é
nisso que toda a sociedade está se transformando: em longas filas à espera de
alguma coisa. Tentei me matar com gás e não consegui. Mas tinha outro problema.
Levantar da cama. Sempre tive ódio disso. Vivia afirmando: "as duas
maiores invenções da humanidade foram a cama e a bomba atômica; não saindo da
primeira, a gente se salva, e, soltando a segunda, se acaba com tudo".
Acharam que estava louco. Brincadeira de criança, é só disso que essa gente
entende: brincadeira de criança - passam da placenta pro túmulo sem nem se
abalar com este horror que é a vida.
Sim, eu odiava ter que me levantar da cama de manhã. Significava que a vida ia recomeçar e depois que se passa a noite inteira dormindo cria-se uma espécie de intimidade especial que fica muito mais dificíl de abrir mão. Sempre fui solitário. Você vai me desculpar, creio que não regulo bem da cabeça, mas a verdade é que, se não fosse por uma que outra trepadinha legal, não me faria a mínima diferença se todas as pessoas do mundo morressem. É, eu sei que isso não é uma atitude simpática. Mas ficaria todo refestelado aqui dentro do meu caracol. Afinal de contas, foram essas pessoas que me tornaram infeliz”.
Sim, eu odiava ter que me levantar da cama de manhã. Significava que a vida ia recomeçar e depois que se passa a noite inteira dormindo cria-se uma espécie de intimidade especial que fica muito mais dificíl de abrir mão. Sempre fui solitário. Você vai me desculpar, creio que não regulo bem da cabeça, mas a verdade é que, se não fosse por uma que outra trepadinha legal, não me faria a mínima diferença se todas as pessoas do mundo morressem. É, eu sei que isso não é uma atitude simpática. Mas ficaria todo refestelado aqui dentro do meu caracol. Afinal de contas, foram essas pessoas que me tornaram infeliz”.
Uma pessoa costumeira e acostumadamente
depressiva não está tão distante do que escreveu Kléber Novartes: “A pior depressão é aquela que criamos. É, por exemplo, reclamar da falta
de um abraço depois de se trancar sozinho em casa”.
A alma, aos poucos, vai se desbotando. Primeiro
desaparece o vermelho e o amarelo, depois o laranja, o violeta e o verde,
seguido do azul, do rosa, do branco... sobrando apenas o cinza. É como se os
dias fossem sempre chuvosos e o sol brilhasse gris.
(texto originariamente publicado em 06/07/2013)
Joaquim Cesário de Mello
Nenhum comentário:
Postar um comentário