domingo, 17 de junho de 2018

A Viagem

Até o século XIX, com  escassez de procedimentos médicos, indicava-se às pessoas adoentadas psíquicas ou fisicamente, viajar. Recomendava-se os trópicos em razão do bom clima e da boa luminosidade - O Brasil estava entre os lugares mais lembrados. A validade dessa forma de tratamento, ainda não se confirmou, sabe-se, contudo, que a "mudança de ares" independente do destino é um agente de transformação.

A condição de viajante e de peregrinos estão por demais metaforizadas na literatura e nas artes. Viagens representam um ato de heroísmo, de passagem, de reflexão e de fé -  acrescenta-se  a metáfora da   nossas buscas e do eterno retorno. Repetimos, sem bem saber o porquê, a trajetória dos elefantes, retornamos às origens seguindo em frente para dissolver questões pretéritas -  Guimarães Rosa destaca esse impasse temporal, num de seus personagens, uma criança raptada por malfeitores.  Suplica-lhes: "quero ir simbora para trás, seu moço". Viajar  traz a tensão entre a ida e o retorno - suponho que retornamos mais do que seguimos em frente - o passado se repete no futuro,  o mundo  exterior retifica o interior, habitado por recordações. Viajar  nos devolve o começo de tudo, as nossas origens nômades,  momentos que a ideia de morte, de existência e de finitude eram precárias.

Inaugura-se a literatura  no ocidente com viagens: A Ilíada e, especialmente, a Odisseia. Nesta, a interminável viagem  de retorno  de Ulisses, em meio a aventuras e peripécias que lhe consome tempo e provoca adiamentos, podemos metaforizar a ânsia concomitante por seguir e por retornar.  A Odisseia: o eterno retorno. 

Sándor Ferenczi, discípulo contemporâneo de Freud  conjecturou o mito do eterno retorno com a. teoria da thalassa, que especula a ideia do retorno ao ocenano, a água, ao mundo líquido,  a busca da vida uterina. Se os primeiros seres vivos eram aquáticos e só posteriormente parte deles tomaram a superfície da terra, guardamos a história de um retorno à vida oceânica (thalassa: "vindo do mar") ao útero materno. A vida é concebida e se inicia em ambiente líquido.
 
Ao viajar clamamos  por ousadia, originalidade e amparo, criamos mitos que fazem um caminho circular, onde o fim, ou a morte, se pareça com o início. A literatura traz incontáveis histórias de viagens e viajantes, talvez na tentativa de  consolar ou  escancarar o nosso legado. Dom Quixote, O Cavaleiro Andante, parte numa viagem real e imaginária pela região da Mancha em busca  de  verdades provisórias e delirantes. Dante,  na escuridão da floresta, adentra no inferno e peregrina, com Virgílio,  nas fossos da errância humana. Acab, embarca no Pequod, e comanda a expedição, uma longa viagem em busca de Moby Dick, para revidar os sentimentos atribuídos  ao cachalote. Edmond Dantes, ou o Conde de Monte Cristo, retorna disfarçado, após uma longa e perigosa viagem,  para vingar seus inimigos e se fazer vivo nos seus ressentimentos.

Assisti recentemente ao filme Ella e John de Paolo Virzi que se inicia por uma viagem nas estradas norte-americanas. Ella e John são os personagens principais que decidem viajar subitamente sem o conhecimento dos filhos, O roteiro, uma pequena Odisséia segue o mito do eterno retorno: é uma viagem real, mas uma ida ao mundo das recordações - o personagem John, nessa aventura recordativa é  portador de Doença de Alzheimer. Um paradoxo? O filme traz  a ideia de que, se a vida é uma festa, seus personagens são aqueles convidados que deixam a festa antes que se encerre no sofrimento. São dois velhos risonhos que perambulam por estradas, mas com a mesma consciência da frase de Philip Roth: "a velhice não é uma batalha, é um massacre".



Marcos Creder

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