domingo, 19 de novembro de 2017

Das metáforas da paixão

Em visita ao Arquivo Público Nacional, surpreendo-me com os escritos do passado. Engana-se quem imaginou que  me refiro aos tempos remotos, dos mil e oitocentos ou mil novecentos e pouco, tempo em que a língua portuguesa era mais formal e as fotografias praticamente inexistiam. Falo de notícias relativamente recentes,  do final do século XX e início do XXI, publicadas na nossa infância ou juventude, onde as gravuras e as fotografias começaram a ganhar cor.

Folheio. As notícias passam e, com o passar dos anos, as manchetes se tornam ingênuas; anúncios comerciais envelhecem e -  como a velhice humana - aqui e ali se ridicularizam; notas fúnebres de famílias numerosas transpiram retórica hipócrita: "o inesquecível, a enorme perda, o trágico desaparecimento". Páginas dos classificados dedicam-se notas pessoais, agradecimentos religiosos, aviso de achados e perdidos, busca de parceiros sexuais ou de amizade sincera, e declarações de amor. As frases eram curtas, os pensamentos sumários, pois anunciar era caro - as palavras nesse tempo custavam dinheiro. Imagino que a humanidade sempre ambicionou a se mostrar e a fazer declarações públicas. Chegam, eventualmente, ao constrangimento.

Procuro notícias do mês de junho, deparo-me com  páginas dedicadas aos anúncios do  dia dos namorados. Leio as declarações de amor com todas alegorias e metáforas que lhes são inerentes - aliás, sem metáforas não há amor, pois o amor é  um encantamento, um arranjo de palavras, que soa original apenas para quem as escreveu. O amor solicita, clama, por originalidade e cai em insólitos lugares comuns. Uma dessas declarações, na verdade uma carta, me chama atenção:


Prezada Ana Irma,

Pensei muito se você deveria ou não tomar conhecimento do que lhe falarei. Pensei e não encontrei respostas definitivas. Decidi,publicar no jornal para que todos saibam então. Prezo por sinceridade. Adianto: ser sincero é um ato de coragem, às vezes causa constrangimento.


 Você me  encantou -  bastaria dizer-lhe isso e encerrar por aqui esse bilhete, ou poderia passar horas e horas traçando minúcias de cada detalhe da bela mulher que há em você. Bela sim! Você dissemina uma beleza espontânea e franca que só poucos podem entendê-la. Como é difícil ser belo e simples ao mesmo tempo, não é verdade? pois é seu retrato falado, agora escrito.

Sinto-me próximo à você, como se fôssemos velhos conhecidos - sim, antes de lhe conhecer, já conversávamos, já avistávamos uma paisagem, líamos o mesmo livro, ouvíamos a mesma música, combinávamos o carnaval.Perambulasse escondida no meu desejo desde muito tempo. Eu pensava que você não existia e assim, de repente, me aparece como se morasse desde muito tempo na casa ao lado fazendo barulhos na minha imaginação. Tao perto, ridiculamente tão perto.

    Adoro saber que você está no mundo perto dos meus olhos.

    Despeço sem assinaturas. Não posso assinar essa carta - não seria prudente, não seria ético. Solto apenas essa reunião de palavras, pois seria injusto deixá-las caírem no mundo.
 



Emocionei-me não apenas com o conteúdo (que não é ruim), mas com algo escasso nos dias de hoje, o amor romântico: o amor que não acontece, que talvez jamais acontecerá, mas que está consolidado na escrita. Quem seria esse rapaz, ou esse senhor, que só deixa tornar público apenas a parte aflitiva e irrealizável de sua paixão? Qual o sentido dessa confissão ao anonimato? Essa carta me fez lembrar a inutilidade das cartas de amor, como a carta de uma personagem de Fernando Pessoa, uma mulher, que depois de morta, declara-se - numa espécie de testamento - apaixonada pelo serralheiro. Qual o propósito disso? Cartas de amor foram feitas para doer, para se desatar em sofrimento? Ou ainda, foram feitas para comover aqueles que de algum modo partilham de um sentir inalcançável?

M .Creder

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