Em visita ao Arquivo Público Nacional, surpreendo-me com os escritos do passado. Engana-se quem imaginou que me refiro aos tempos remotos, dos mil e oitocentos ou mil novecentos e pouco, tempo em que a língua portuguesa era mais formal e as fotografias praticamente inexistiam. Falo de notícias relativamente recentes, do final do século XX e início do XXI, publicadas na nossa infância ou juventude, onde as gravuras e as fotografias começaram a ganhar cor.
Folheio. As notícias passam e, com o passar dos anos, as manchetes se tornam ingênuas; anúncios comerciais envelhecem e - como a velhice humana - aqui e ali se ridicularizam; notas fúnebres de famílias numerosas transpiram retórica hipócrita: "o inesquecível, a enorme perda, o trágico desaparecimento". Páginas dos classificados dedicam-se notas pessoais, agradecimentos religiosos, aviso de achados e perdidos, busca de parceiros sexuais ou de amizade sincera, e declarações de amor. As frases eram curtas, os pensamentos sumários, pois anunciar era caro - as palavras nesse tempo custavam dinheiro. Imagino que a humanidade sempre ambicionou a se mostrar e a fazer declarações públicas. Chegam, eventualmente, ao constrangimento.
Procuro notícias do mês de junho, deparo-me com páginas dedicadas aos anúncios do dia dos namorados. Leio as declarações de amor com todas alegorias e metáforas que lhes são inerentes - aliás, sem metáforas não há amor, pois o amor é um encantamento, um arranjo de palavras, que soa original apenas para quem as escreveu. O amor solicita, clama, por originalidade e cai em insólitos lugares comuns. Uma dessas declarações, na verdade uma carta, me chama atenção:
Prezada Ana Irma,
Pensei muito se você deveria ou não tomar conhecimento do que lhe falarei. Pensei e não encontrei respostas definitivas. Decidi,publicar no jornal para que todos saibam então. Prezo por sinceridade. Adianto: ser sincero é um ato de coragem, às vezes causa constrangimento.
Você me encantou - bastaria dizer-lhe isso e encerrar por aqui esse bilhete, ou poderia passar horas e horas traçando minúcias de cada detalhe da bela mulher que há em você. Bela sim! Você dissemina uma beleza espontânea e franca que só poucos podem entendê-la. Como é difícil ser belo e simples ao mesmo tempo, não é verdade? pois é seu retrato falado, agora escrito.
Sinto-me próximo à você, como se fôssemos velhos conhecidos - sim, antes de lhe conhecer, já conversávamos, já avistávamos uma paisagem, líamos o mesmo livro, ouvíamos a mesma música, combinávamos o carnaval.Perambulasse escondida no meu desejo desde muito tempo. Eu pensava que você não existia e assim, de repente, me aparece como se morasse desde muito tempo na casa ao lado fazendo barulhos na minha imaginação. Tao perto, ridiculamente tão perto.
Despeço sem assinaturas. Não posso assinar essa carta - não seria prudente, não seria ético. Solto apenas essa reunião de palavras, pois seria injusto deixá-las caírem no mundo.
Emocionei-me não apenas com o conteúdo (que não é ruim), mas com algo escasso nos dias de hoje, o amor romântico: o amor que não acontece, que talvez jamais acontecerá, mas que está consolidado na escrita. Quem seria esse rapaz, ou esse senhor, que só deixa tornar público apenas a parte aflitiva e irrealizável de sua paixão? Qual o sentido dessa confissão ao anonimato? Essa carta me fez lembrar a inutilidade das cartas de amor, como a carta de uma personagem de Fernando Pessoa, uma mulher, que depois de morta, declara-se - numa espécie de testamento - apaixonada pelo serralheiro. Qual o propósito disso? Cartas de amor foram feitas para doer, para se desatar em sofrimento? Ou ainda, foram feitas para comover aqueles que de algum modo partilham de um sentir inalcançável?
M .Creder
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