Quando abri um livro pela primeira vez fora do colégio, achei estranho, parecia que ler era um ato escolar . Naquele tempo, ainda criança pequena, li com dificuldade, consegui, contudo, com esforço chegar ao final daquela versão adaptada de “A Ilha do Tesouro” de Stevenson. No início, talvez nas duas ou três primeiras páginas, pensei em desistir. Cansava-me, havia me acostumado a pequenos textos com objetivos de, junto com os outros colegas de sala, interpretá-los demoradamente. Ler mais de duas páginas, ou ler fora da colégio, era uma atividade que cabia aos adultos.O que dirá ler um livro inteiro… Precisava de fôlego, como se o ato de ler fosse semelhante a nadar num oceano em que necessite harmonia entre o movimento e a respiração - se feito com muita precocidade, com muita ânsia ou com algum atraso, incorre em afogar-se.
No livro de Stevenson, fui além das duas primeiras páginas, fui seguindo, sabendo que não mais tocava os pés no piso - não tinha como voltar atrás - cheguei ,feliz ao final. Ao comentar minha alegria por ter lido um livro inteiro, percebi que aqueles que me rodeavam, crianças como eu, olhavam-me com curiosidade. Estava em férias e nas férias, comentaram, não se devia estudar, conversar, viver as coisas de fato - enfim brincar. Além do mais, continuavam, aquele tipo de livro contava histórias, histórias inventadas, que talvez fossem mais interessantes se fossem vividas fora da ilusão das palavras. Saí, então, com o livro na mão pelos quintais de nossas casas. Uma de minhas ideias, entre tantas que se inventam nos quintais, era de brincar de mapas de tesouros - assim como no livro. Alguém me perguntou onde o enterraria, apontei para um pé de carambola. Fiz um desenho como no mapa do livro, em um caderno, dei alguns passos, apontei para o chão, Aqui. A mesma pessoa que fez a pergunta, indagou o que eu enterraria, eu não tive alternativa, com o livro na mão, mostrei : isto. Todos gargalharam. “Isso não vale nada”. tem que ter diamantes, rubis, esmeralda, ouro, prata, ouro branco.. Pensei numa pedra de água-marinha que enfeitava a cristaleira da sala de minha casa. Pensei em trazê-la. Não a trouxe, jamais faria uma coisa dessas - pensei, censurando-me. Sem preferi, então, arrancar algumas páginas do livros ilustradas e transformá-la em tesouro - de mentirinha, disse sorrindo. E assim o fiz, e o fiz animadamente, desmanchei o livro e fiz de suas páginas, pedras preciosas. Poupei, contudo, a capa dura que abria e encerrava o livro, entre aquelas abas, vi no espaço vazio, sem miolo, um buraco. vi mais. Vi o lugar que a literatura tentava preencher propiciar: a solidão.
Tempos adiante, já com doze ou treze anos, folheei um livro na biblioteca de meu pai, abri-lhe as páginas. li as primeiras frases:
“MUITOS anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.o. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo”
Iniciava a leitura do maior significante literário, iniciava a ler “Cem anos de Solidão”, inciava mais um belo percurso na solidão. que comentarei no nosso próximo encontro.
Marcos Creder
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