Recentemente estava eu de “bobeira”
em certo espaço de tempo em um determinado dia qualquer. Que fiz? Fui ao Youtube
e acessei a um velho filme que havia assistido nos longínquos meados dos anos
70. Trata-se de Face a Face, do cineasta sueco Ingmar Bergman. O enredo conta a
história de uma psiquiatra, Dra. Jenny, bem sucedida profissionalmente e casada com
outro psiquiatra. Todavia ela é acometida de um colapso nervoso e sucumbe
psicologicamente frente a fantasmas e emoções de seu passado que voltam dolorosamente
a lhe assombrar. Embora não seja uma de suas obras mais arrebatadoras, Face a
Face tem seus méritos e é um puro ouro bergmaniano. Lá estão todos os elementos
das sombrias tensões que marcam o texto de Bergman, e como sempre ele nos
revela o quão analfabetos emocionais somos. Vejamos, por exemplo, este seguinte
trecho que a personagem fala a seu amante; “algo
muito estranho aconteceu comigo. Quando vim buscar Maria (uma paciente sua)
havia dois homens na casa. Um deles
tentou me violentar. No início quis gritar, então pensei que ele doente. Então...
ele pôs seu rosto apertado em meu peito. Ficou ruborizado e tentou me penetrar.
De repente, eu queria que ele fizesse aquilo. Não era estranho. Estranho é que,
mesmo quando eu queria, ele não conseguia. Tudo estava vedado e seco”.
Logo
no início acompanhamos a personagem em visita a seus avós onde irá passar a
noite no mesmo quarto que era dela quando criança. Lá estão intactos os mesmos
objetos e decoração de sua fase menina, e por isto mesmo lá também estão
intactas as suas lembranças infantis. Ao encontra-se sozinha noite adentro tentado
conciliar o sono ao som sutil e irritante do tic-tac de um relógio se vê então
assustadoramente vigiada por uma soturna velha. O grito de pavor lhe foge a
boca e ao acender a luz nada há. Dia seguinte volta ao trabalho, mas sua vida
não correrá a rotina de antes, pois aos poucos a sua própria loucura vai lhe
dominando. As suas alucinações são revisitações de seu passado.
Em
outro momento do filme a personagem extravasa: “Papai era tão bom. Era alcoolista. Sempre me abraçava. Nos dávamos tão
bem. Mamãe dizia: “basta de mimos”. E vovó: “seu pai pode ser bom, mas é um
vagabundo e preguiçoso”. Mamãe estava de
acordo. Elas o menosprezavam e queriam o meu apoio. E foi assim. passei a me
envergonhar quando papai me abraçava e beijava. Me preocupava em agradar em
agradar a minha avó. Então tive minha própria filha. Anna gritava de um modo
estranho. Era diferente das outras crianças. Não gritava porque estava com medo
ou tinha fome. Era mais um grito verdadeiro. Era algo primitivo. Às vezes eu
queria bater nela por isso. E às vezes me desmanchava em ternura. Mas sempre
comigo no meu caminho. Um temor egoísta, estranho. Não deveria haver uma
entrega. E a felicidade apagou-se. Lembro da primeira vez que ouvi mamãe
chorar. Eu estava no quarto e ouvi mamãe e vovó falando. Vovó falava com uma
voz baixa, estranha... e de repente mamãe gritou. Eu não sabia o que se
passava. Eu estava muito assustada, mais por causa da voz da vovó. Fui até a
sala e vi mamãe sentada numa cadeira perto da janela e vovó sentada no meio da
sala. Quando cheguei ela se virou para mim e olhou. Era a cara de vovó, ainda
que não era. Olhava como um cão raivoso pronto para morder. Corri para o quarto
e rezei para que vovó tivesse sua cara de volta e que mamãe não chorasse. É tão
horrível quando as caras mudam e não se pode mais reconhecê-las”. Isto é
Bergman na veia, sacou?
Se
a angústia é a fala entupida, como escreveu Ana Cristina Cesar, em Face a Face
acompanhamos o seu desentupir e eclosão. A angústia é existencialmente um
fenômeno intrinsicamente humano e é a primeira manifestação da alma humana
muito antes de qualquer afeto. Nascemos com angústia e com angústia convivemos.
Certa vez um outro cineasta, Andrei Tarkovsk, disse que em Bergman não havia
simbolismos, porém um naturalismo quase biológico. E é isto que faz Bergman em
seu filme sob comento: ir além das sombras e descobrir a alma em sua mais
obscura morada.
O
próprio Bergman nos revela que as pessoas (seus personagens) são emocionalmente
analfabetas. Prossegue ele: “elas não tem
a menor auto compreensão, não sabem nada a respeito de si mesmas. Elas vivem
suas vidas. Elas são educadas e talentosas, leram todos os livros, sabem de
tudo, são orientadas pelo meio. Elas têm todos os recursos, mas não conseguem
lidar com os abcs emocionais mais simples”. Sim, somos todos analfabetos
emocionais.
Rendo-me à Bergman. Seu cinema é universal e suas obras cinematográficas beiram à
perfeição fílmica, resvalando nas entranhas secretas de nossos psiquismos mascarados
de personas. A alma nos demonstra ele é fêmea, e assistir um filme de Bergman é
atravessar espelhos e recolher os cacos.
Amanhã vou colá-los de volta no lugar e poder sair por aí mostrando pros outros que sou feliz.
Joaquim Cesário de Mello
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