Nestes tempos folgados de férias escolares, digo acadêmicas, encontro-me com maior disponibilidade de mim. E, assim, um tanto ocioso e um tanto livre das obrigações e das teoréticas academiais, passei a assistir alguns filmes e ler alguns livros pendentes e novos. Recentemente assisti na Netflix o filme "A Ponta de um crime" (Brick), de Rian Johnson, seu primeiro filme de cinema, vencedor no Festival de Sundance (2005) do prêmio de originalidade e visão. Rian é roteirista e chegou depois a filmar "Looper" e alguns capítulos da série televisiva "Breaking Bad". A Ponta de um Crime é um filme de suspense ao feitio dos filmes de David Lynch. Eu diria, até, que um estilo David Lynch adolescente. Adolescente aqui expressado não por ser menor ou pueril, mas sim por centrar sua narrativa no âmbito e no universo juvenil
higt school dos subúrbios dos EUA mediano. Um filme que flerta com o
noir e transita beirante pelo onírico. Com ares de
teen movie não há nada de adolescente nele. Bizarro e um tanto psicótico, Brick (que em inglês é tijolo, mas também gíria para tijolo de heroína) realmente tem algo de criativo, embora com sabor de requentado.
As aparências enganam. Nada é o que parece ser. A trama é frenética e algo subvertida. Sua narrativa nos leva (através do personagem central) a um submundo que geralmente não conhecemos ou não queremos saber de sua existência. Enigmático, misterioso e sensual, assisti-lo é um exercício mental interessante. Com um roteiro rocambolesco e cheio de peripécias, temos frente a nossos olhos um desfile de personagens excêntricos e extravagantes em um enredo que se desenrola sem pressa, mas que nos mantém a atenção. Inteligente.
Elaborar e produzir um filme que se afasta dos cânones do
mainstream hollywoodiano é meio caminho andado para se transformar em
cult movie. E o que vem a ser um filme cult? Argumento original e insólito, história inovadora, estilizado e estiloso, ousado e fora do convencional, podem ser critérios que conjugam a definição de cult. Geralmente um filme cult é cultuado por um público restrito. Para aqueles que curtem a mediocridade imperante dos cinemas de shopping, fuja. Fuja ou não assista A Ponta de um Crime. Sua praia é outra.
No filme em questão o que mais interessa é o subliminar. Psicologicamente não percebemos tudo. Podemos até falar em percepção e subpercepção. Quanto a relação entre percepção e consciência, Freud em seu livro "
Moisés e o Monoteísmo" escreve: "
do fenômeno da consciência, podemos, pelo menos, dizer que
esteve originalmente ligado à percepção. Todas as sensações que se
originaram da percepção de estímulos penosos, táteis, auditivos ou
visuais, são as mais prontamente conscientes. Os processos de
pensamento, e tudo o que possa ser análogo a eles no id, são, em si
próprios, inconscientes". O inconsciente existe (freudiano ou não) porque muitas coisas e eventos passam ao nosso redor e em nossa mente cuja a mesma não é capaz de perceber conscientemente. Desde a Grécia antiga, Demócrito, por exemplo, já dizia que "muito do perceptível não é claramente percebido". Assim, voltemos ao filme ora abordado.
Filmado em grande parte em um universo escolar com muitos espaços vazios de pessoas, todos os personagens (principais e/ou secundários) parecem fazer parte de um mundo à parte onde todos, de uma forma ou de outra, terminam sendo suspeitos de uma espécie de organização conspirativa e criminosa. O subterrâneo das marginalidades aflora à pele. A originalidade e singularidade do cineasta Rian Johnson também pode ser apreciada em "Looper - Assassinos do Futuro", filmado anos após em 2012. Não é fácil ser incomum em uma arte industrial impregnada de mesmices e remakes. Se o filme A Ponta de Um Crime é feito em um cosmos juvenil, ele não é composto para adolescentes, seja de qualquer idade.
Se ao dormirmos sonhamos, em cinema também sonhamos, sonhamos acordados. Em A Ponta de Um Crime o que temos é uma história estruturada de maneira onírica. Nele cruzamos a fronteira entre o manifesto e o latente. Somos de imediatos retirados do convencional e entramos no subjetivo das entrelinhas. Passamos do limite do espelho e somos, assim, levados a transitar no lado obscuro do ser humano e de suas sociedades. Como se voltássemos a ser crianças seguimos a trajetória do personagem central em uma brincadeira de faz-de-conta. Como disse acima, nada é o que parece ser. O que é não é visível à interpretação rasteira das percepções e das lógicas superficiais das cognições sem imaginação.
O mito do sonho americano é desconstruído sem muitas delongas. O esgarçamento do tecido social é aqui representado um tanto vertiginosamente goela adentro. Diferentemente de Veludo Azul, de David Lynch, não transitamos de um um mundo a outro, porém somos de chofre jogados na loucura misteriosa que parece subjazer na epiderme do mundo evidente em que vivemos ou sobrevivemos. Somos, desta maneira, lançados em meio ao desconhecido, ao oculto, ao enigmático e ao tenebroso. Um entretenimento para estes dias repousantes com sérios ares de uma maluquice reflexiva. Vale suas quase duas horas. Assista sem pipoca.
Joaquim Cesário de Mello
Nenhum comentário:
Postar um comentário