domingo, 22 de fevereiro de 2015

A Infelicidade Comum - parte 2

Falei no artigo anterior sobre os limites e os propósitos da psicoterapia. Trabalho há anos dentro dos princípios da teoria  freudiana e afirmo, sem medo de errar, que um dos maiores inimigos dessa teoria são seus admiradores. Não que façam por má fé ou por necessidade de se destacar com novas "contribuições", mas por prováveis erros de interpretações do entendimento do modelo teórico de Freud - que também pode ser falível. Jacques Lacan tinha razão ao afirmar que a primeira resistência à análise é a do próprio psicanalista, pois tendemos a nos apresentar frente ao sujeito com amarrações de teorias estéreis que nos convem.

O freudismo gerou, como outras teorias do conhecimento, uma infinidade  de dissidências. Como a teoria psicanalítica reina na abstração  e se sustenta em parte por pilares metafísicos, a vazão  para equívocos, em razão de releituras por demais subjetivas,   ocorre com frequência. Das dissidências surgem as escolas, as instituições e suas ideias absolutas formam bolhas teóricas - eventualmente úteis -  que trazem aprofundamento teórico, mas, em paralelo, predispõem a formação doutrinária/dogmática -  observa-se, com alguma frequência,  essas instituições se organizarem como  instituição religiosa. E isso não é exagero. Escutamos aqui e ali alguém utilizar dos termos: "doutrina" freudiana, "escrituras", discípulos". Há no panteão psicanalítico, inclusive, um  punhado de Judas - ocorre-me Stekel, Jung, Adler, haverá de ter outros. Acrescento ainda que, a forma como se organiza os textos fundamentais,  contamina-se em religiosidade: os escritos freudiano seria o “Velho Testamento” da metapsicologia (Judeu), e  os escritos dos teóricos  pós-freudiano  - há vários candidatos a filho do pai, ou quiçá a "anjos caídos" -  o “Novo Testamento”.

Disse  no outro artigo que a figura de Freud, no senso comum, está fortemente  ligada  ideia do “complexo de Édipo” e  dos conflitos familiares, e somente dessa parte teórica já se pode observar diferentes entendimentos. Na verdade, parte dos teóricos que "reinterpretaram", ou melhor, interpretaram à sua maneira, as tensões das relações  parentais,  fundamentaram-na  em maniqueísmos rasos, transformando o ambiente familiar numa eterna luta entre o bem e o mal. O herói, aliás,  é aquele da triangulação que se tornou mais neurótico (ou psicótico) e os algozes em geral é o pai e/ou especialmente a mãe. Na década de 1960 e 1970 – e há quem pense assim nos dias de hoje -  muito se discorreu sobre a responsabilidade da figura materna na eclosão dos quadros mentais graves. A mãe foi culpabilizada por provocar  um sem número de eventos danosos à vida afetiva do filho. A mãe tornou-se o pivô das  psicose e neuroses graves.  As pessoas que aderem a essas hipóteses, não estão inteiramente erradas, mas equivocam-se  ao dar um caráter moral ao papel da mãe na relação com o bebê - a figura materna é hostilizada pelo seu suposto ardil.  Essa mãe tirana ou tiranizada suscita discussões teóricas fervorosas e acusadoras. No entanto, cabe aqui retificar que essa mesma figura padece de sofrimento e caso seja criminosa, desconhece o crime que cometeu - feliz ou infelizmente o inconsciente  não pode ir ao banco dos réus.  

Mas que papel tem a mãe em psicanálise? Será que quando se refere à função  materna, aponta-se para aquela que gerou ou adotou o bebê?   Faz-se necessário destacar a função materna, ou outras funções,  advém de arranjos subjetivos elaborados pela tensão sujeito/figuras parentais. O lugar de mãe não está restrito ao mundo externo, mas, em especial, ao mundo interno do sujeito - do bebê. Esse lugar é o lugar do acolhimento, da alimento, do alento e das primeiras impressões e experiências afetivas. Esse lugar não é exclusivo da mãe biológica ou adotiva, sequer da mulher, mas daquele ente que assuma essa função.  Nos quadros graves de psicose esse “lugar da mãe” é tenso e indefinido. É um lugar ambíguo de sentimentos ambivalentes e de ideias terrificantes. O acolhimento, nesse caso, é hesitante e a depender dessa tensão,  não forma indivíduo, pelo contrário,  faz do ser um prolongamento do desejo/conflitos dessa figura.  

 
O filme Shine traz um bom exemplo  desse conflito.  O longa narra a biografia do pianista australiano David Helfgott, em especial, de sua relação com o pai. O pai assume de forma misturada a função de pai e mãe.  É um pai autoritário frustrado profissionalmente e migra seu desejo de ser pianista para o filho. Sua relação com o filho é, em verdade, ambivalente, no mesmo tempo em que deseja o sucesso, teme perder o filho para o sucesso.  Cabe lembrar que o jovem David teve irmãos, mas apenas ele se submeteu ao conflito do pai e adoeceu - teve um surto psicótico. Para alguns psicoterapeutas, ele foi escolhido. Acrescento, foi escolhido e se deixou escolher. Pois não há lugares de vítima e de algozes na trama ou no drama familiar. Há investimentos danosos de ambas as parte no “capturante” e no capturado.

Ressalvo que, ao tecer este pequeno comentário que destaquei as questões envolvendo a experiência subjetiva ou intersubjetivo do sujeito, o adoecimento psíquico é multifatorial e envolve fatores diversos: além desse que citei, há fatores constitutivos – incluindo genéticos  -, ambientais e sociais.



Assisti recentemente a um seriado – embora não costume ver seriados – inspirado no clássico “Psicose” de Alfred Hitchcock.  “Bates Motel”, faz  alusão ao cenário onde se passou o filme original e traz uma suposta origem dos conflitos dos personagens de "Psicose". Aliás, o cinema trata costumeiramente o tema da psicose (dos transtornos mentais) de maneira caricata e tenebrosa e isso se confirma em no próprio filme de Hitchcock.  A série, contudo, mostrou-se diferente e, para minha surpresa,  seus personagens foram construídos de forma bem mais elaborada. – cometo a heresia de dizer que, nesse aspecto, gostei mais da série que no filme original. Os dois personagem principais da série, a mãe e o filho, de nomes muito semelhantes: Norma e Norman (Bates),  bem interpretados por Vera Farmigo e  Freddie Highmore  revelam complexa trama da relação mãe lugar/ filho.  Uma  relação reticente, ambivalente, ressentida  em que se pactuam as pequenas as grandes transgressões.  Sentimentos de amor e ódio circulam concomitantemente. O gestual, o inaudito, fala bem mais do que o dito. Contudo, o mais relevante do filme e da trama da formação da psicose, é mais uma vez destacar a ideia de que , na relação mãe-bebê,  não há culpados. Há, em verdade, uma dramática relação em que se pode  julgar seus personagens, mas, quem sabe, escutá-los e entendê-los.


Marcos Creder.

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