domingo, 10 de agosto de 2014

(Curto)circuito alternativo

Li recentemente o texto do último domingo do LiteralMENTE escrito - muito bem escrito, por sinal - por Joaquim Cesário e posso dizer que coincidências me ocorreram: a primeira foi a leitura ao acaso e concomitante  de Emily Dickinson e, a segunda, a reflexão que se fez sobre a palavra: “alternativo”. A sintonia com a poeta norte-americana foi ao acaso mesmo, pois levantei os olhos nas estantes de uma biblioteca há uns quinze dias e  fui capturado pelo título de um de seus livros; quanto a segunda reflexão, que diz respeito a palavra “Alternativo”, não houve acasos, mas uma amarga constatação de que se vem se formando uma elite intelectual - se é que posso  chamar de intelectual, embora inquestionavelmente uma elite - capenga.

O mundo das artes e da literatura foi sempre invadido por parte de pessoas  que, apenas pelo modo de se vestir e de se expressar, por si só, já se julgam  cultos e inteligentes. Essas pessoas se avolumam  nas vernissages, nos lançamentos de livros, nos recitais, nos   workshops e nas salas de cinema e teatro.  São úteis.  Uteis por duas razões: a primeira porque são eventualmente inteligentes mesmo, ou, pelo menos, se  parecerem inteligentes, e, a segunda, por propagandearem  eventos que tenham algum valor como obra de arte - e eu, no meu otimismo, afirmo que sempre haverão de existir obras de arte, de cinema, de teatro ou de literatura de qualidade.  A dificuldade que eventualmente pode ocorrer é uma dificuldade dessas pessoas em fazer escolhas inteligentes. Posso estar sendo pretensioso em querer aqui ditar normas do que é arte e do que não é arte, mas não sou tão presunçoso assim.  Restrinjo-me a pequenas ocorrências em que, como disse Joaquim, com outras palavras, a estética da cultura vivida por essas pessoas esqueceu seus agentes culturais.

Já devo ter falado aqui mesmo no blog que no passado os filmes de qualidade, muitas vezes, sofriam para entrar no circuito comercial; havia várias razões para isso, desde as dificuldades de recursos ao desinteresse do público. O que nos restava? procurar cinemas mais precários salas apertadas e lugares insalubres. Assisti, por exemplo,  A Hora da Estrela - filme baseado na obra de Clarice Lispector - num cinema pornô, que reservava às 9 horas da manhã do  sábado, no centro da cidade, aos interessados nesse filme; além do horário inconveniente, não havia ar-condicionados, sequer poltronas acolchoadas.  A imagem era razoável, o áudio péssimo. O nome do cinema? Cinema Especial... Lá estávamos todos, os inteligentes, os estetas , os arrogantes, os visionários, os eruditos, os cultos, e por fim, essas pessoas que citei acima que eram, por assim dizer, a caricatura de todos esses. Ees sempre eram - na verdade, sempre serão - maioria. Mas qual era o sentido do evento? a resposta era simples: ter acesso a bons eventos culturais,  mesmo que custasse o desconforto. Daí provavelmente veio um dos sentidos da palavra "alternativo",  e "circuito alternativo". "Alternativo" não era um modo de ser , mas o roteiro de lugares onde, na ocasião, eram  a única alternativa à expressão artística de boa qualidade.
Pois bem, o tempo passou, muitas coisas mudaram,  a palavra culto, se reduziu a “cult” - como sempre temos um verdadeiro fetiche por estrangeirismos - e o lugar alternativo passou a ser o  ator e protagonista, deixando de lado o evento, ou se porventura venha ocorrer algum evento, seria melhor não tê-lo.
Cultua-se hoje, mais ao incômodo, o desconforto, a feiúra, o horrendo, em nome de coisa nenhuma. Explico-me melhor, se  fóssemos atualizar o passado, ser (ou querer ser) culto era assistir Clarice num cinema pornô por não ter outra alternativa -se tivesse melhores,  iríamos, (quer dizer, eu iria) ; e, ser Cult, ou “alternativo" da atualidade, do mesmo modo, seria ir ao cinema, mas no caso a grande “questão” (palavras por demais desgastada) seria curtir não mais Clarice mas quiçá o próprio filme pornô dando-lhe status de uma  obra de Felinni ( “quem é esse cara?” diria o mais honesto  - embora raro - dos “alternativos”).  Há nesse contexto “cultural” uma desvantagem a mais: se se discute o filme pornô nos jargões e clichês inteligentes -  “dentro da perspectiva” do “papo cabeça”, “da exploração sexual”, “da sociedade do corpo”, “da erotização banalizada” etc -  nem mesmo à pornografia o filme se prestou.  Enfim, se valoriza o brega, o grosseiro, o tosco

Talvez por isso, considero muito dessas formas "alternativas",  um modo enrustido  de cultuar  o brega, um brega estilizado, de vocabulário fugidio. Porque enrustido? Porque não se acham, ou não querem se achar bregas. Ser brega  é feio, mas é a "alternativa". "Alternativo" seria então uma forma elegante ou despojada de ser brega, um brega politicamente correto e pop (que nadar tem  haver com popular), ou ainda, como se fossem uma espécie de ativista do brega
Curto
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Li quando adolescente um texto teatral que muito me impressionou. Era um texto de um movimento teatral que se chamava na época do "teatro do absurdo"  e Eugênio Ionesco,era um dos seus autores mais importantes  hoje um clássico da dramaturgia. Na peça os personagens iam misteriosamente se transformando em animal, especialmente em rinocerontes. ( "O Rinoceronte" é o título da texto). Tudo parece ocorrer por uma adesão pouco sofrida, pouco questionada, ou se sofrida resignada.como se fizesse parte natural do destino daquela gente. No final um dos personagens, o único não rinoceronte diz: o único que se surpreende, diz:

(...) Como eu sou feio! Infeliz daquele que quer conservar a sua originalidade! Muito bem! Tanto pior! Eu me defenderei contra todo o mundo! (Volta-se de frente para a parede do fundo onde estão as cabeças dos rinocerontes, sempre gritando) Contra todo o mundo, eu me defenderei! Eu me defenderei contra todo o mundo! Sou o último homem, hei de sê-lo até ao fim! Não me rendo!


                                                                Cai o pano

Marcos Creder

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