Há cerca de dez anos assisti a um desses filmes americanos de aventura que
estava na moda. A história era mirabolante e futurista e contava a rotina de um
grupo de policiais americanos - redundante? - que investigava os crimes de
maneira inusitada. Eles tinham uma espécie de artifício tecnológico e
“paranormal” que previa crimes que ainda estavam por acontecer, prendendo os
bandidos antes dos seus atos criminosos. Como todo filme desse tipo, a história
ruma no sentido de que esse tipo de prevenção era impossível e que tinham “interesses
espúrios e capitalistas selvagens por traz” – interessante que os filmes
norte-americanos tendem sempre a criar
esse enredo conspiratória que envolve o ganho de volumosa somas de
dinheiro (bilhões de dólares) que
culmina na “moral”: “dinheiro não traz felicidade” – logo nos Estados Unidos? –
e, acrescento, traz menos ainda quando a vítima é interpretada por Tom Cruiser
– no cinema, quando se maltrata gente bonita, o crime, certamente, é mais hediondo e mais passível de vingança.
O filme se chamava Minority Report (não me recordo o nome que deram no
Brasil). Porque falo de um filme tão
remoto e tão assim desinteressante? Vejamos...
Há poucos dias vi um artigo do conceituado
médico Dráuzio Varela que defendia a
internação involuntária dos dependentes químicos, especialmente de Crack, sob o
argumento de que antes de se tornarem criminosos, devem ser recolhidos das ruas
e tratados mesmo que não tenham nenhum desejo de querer qualquer tipo e
tratamento. Entendo a sensatez de seus argumentos e da ideia que se tem de
internamento como sinônimo de tratamento adequado. Concordo que existem
situações em que de fato se faz necessária a internação involuntária mas sob
determinados parâmetros. A lei Federal 10.216/01 permite que pessoas possam ser
internadas involuntariamente desde que tenha indicação médica e que essa
internação seja comunicada ao Ministério Público no prazo de 72h – internação,
diga-se de passagem, em unidade especializada, ou seja, hospital com equipe
multidisciplinar em regime de 24h. Quais seriam essas indicações médicas? O consenso
entre os psiquiatras é de que seriam situações em que os pacientes desconheçam
que sejam portadores de transtornos psíquicos graves, que quebrem o teste de
realidade e que o distúrbio, por fim, ofereçam
riscos a si ou aos outros: risco
imediato de suicídio ou, por exemplo, de agressão em consequência de atividade
delirante-alucinatória. Daí entramos numa polêmica: o dependente químico tem
consciência de seu transtorno? Se tem,
que poder teriam os profissionais ou o Estado em interceder no seu desejo? E ainda, por
quanto tempo? São tantas perguntas para bem escassas respostas.
SIMÃO BACAMARTE - O ALIENTISTA |
O crack, como sabemos, é uma substância
psicoativa devastadora e o aspecto físico, psíquico e ambiental em que se dá seu
o consumo é degradante. Tem um poder muito elevado de provocar dependência – as
substâncias de maior risco mais imediato são a heroína, o próprio crack (que é
derivado da cocaína) e a nicotina. Como toda substância que tem ação no SNC tem
potencial de causar comportamentos impulsivos e agressivos – consequentemente
comportamento relacionado a atos de violência. Então, nesse caso se justifica o
argumento do Dr. Dráuzio: “melhor tratarmos antes de serem criminosos”. Vamos,
contudo, abrir mais o leque dessa discussão. Se tomarmos como exemplo uma outra
substância psicoativa, o álcool, a polêmica se alarga. Estudos apontam que
entre 35 e 66% dos atos de violência doméstica, o agressor havia utilizado bebida alcoólica. Então, se seguirmos o
raciocínio do Dr. Dráuzio teríamos que criar incontáveis leitos de hospícios e
reduzir significativamente a população carcerária, internando involuntariamente
os bebedores, inclusive, os bebedores ocasionais... .
Seria, enfim, a efetivação da psiquiatrização dos problemas da esfera criminal
e social. Faríamos como no conto “o Alienista” de Machado de Assis: internar todos os insensatos (a maioria da
população) na casa Verde – um hospital psiquiátrico modernamente equipado
dentro dos padrões do século XIX. Simão Bacamarte, o psiquiatra-personagem
principal, sem sombra de dúvidas, internaria compulsoriamente até os tabagistas,
sob a sensata alegação de que estão tentando continuamente se matar.
O problema do crack é realmente
um tema de extrema gravidade, mas não devemos por o carro na frente dos bois
nem se utilizar do provérbio “para o desespero: remédio heróico” – pois como
nos diz o pintor espanhol Goya num de seus “caprichos” (uma série de suas
gravuras) “o sonho da Razão Produz Monstros”. Precisamos, inicialmente, ofertar o tratamento
adequado a quem o quer, o que ainda está longe de acontecer,
disponibilizando leitos de
desintoxicação, albergues, ambulatórios, orientações em áreas de risco, tratamento em regime comunitário, e internar involuntariamente apenas
as situações excepcionais em que haja quadros de psicose desencadeado pelo uso
contínuo de drogas ou de extremo (imediato) risco de causar dano a si ou aos
outros. Ainda assim por curto período de tempo - até o momento em que o sujeito
possa decidir sobre o destino do seu tratamento. Deixar pacientes internados
por meses ou até mesmo anos em instituições de precárias funcionalidade sem o
desejo ou a adesão por parte do paciente é jogar dinheiro no lixo, ou melhor,
no bolso daqueles que dizem que a privação ou o encarceramento do sujeito é o
melhor tratamento. Sabe-se de muitas instituições que o encarceramento é maior e mais restritivo que no sistema prisional brasileiro. Como
no filme americano deve existie interesses espúrios por traz, pena que se tem poucas
pessoas com a estética "Tom Cruiser" para serem defendidas ou vingadas no momento oportuno.
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