Nós que lidamos com adolescentes,
e deles sabemos de suas intimidades e segredos, conhecemos os riscos e perigos
a que eles estão submetidos. Um deles é o da automutilação que atinge algo em
torno de um para cada cerca de nove/dez jovens. A automutilação é também
conhecida e denominada por “cutting”,
que em inglês significa “cortando”.
As
cicatrizes são marcas de momentos de angústia e tristeza descontados na pele. O
fenômeno da automutilação é cada vez mais visível na adolescência,
principalmente por ser uma etapa evolutiva na vida onde as emoções parecem se
intensificar. As raivas, as ansiedades, as frustrações e as tristezas (dores
internas) são sentimentos fortes demais ao jovem que ainda não consegue lidar
bem com tais emoções e como que as troca pela dor física.
Embora
acima tenha dito ser a automutilação um fenômeno cada vez mais visível, o
adolescente, na verdade, busca dissimulá-la. Os cortes geralmente são feitos em
partes do corpo onde a roupa possa encobrir. Que a roupa cubra as marcas é uma
coisa, mas o jovem não consegue ocultar é a mudança do comportamento. Meninas
que adoravam usar blusas de alcinhas de repente passam a usar roupas de mangas
compridas e de inverno em pleno calor de verão, por exemplo.
O
assunto é ainda pouco estudado e alguns até o consideram como sintoma de outros
transtornos psíquicos, mas já existem propostas em classificá-la como uma
doença específica. Neste sentido último, a automutilação é um transtorno
relacionado ao autocontrole, ou seja, onde a pessoa não consegue conter seus
impulsos e agride a si mesma com objetivo de aliviar desconfortos psíquicos.
Os
poucos estudos e pesquisas a respeito apontam que a automutilação é mais
recorrente no sexo feminino, na faixa etária entre 15 e 24 anos. Dos que
praticam a automutilação na transição entre a infância e a adulteza, cerca de
90% não continuam a prática ao se tornarem adultos, e menos de 1% dos que se
mutilam não têm intenções suicidas. Os principais fatores de risco associados,
entre outros, são a depressão e a existência de uma família pouco estruturada.
Ferir-se
se torna um vício que pinta a passagem da criança para o adulto de vermelho. O
se machucar ou se cortar não visto por quem o faz como um problema, mas sim
como uma espécie de “remédio” que lhe ajuda a aliviar a dor da alma. Embora
sinta vergonha em expor as marcas e feridas autoprovocadas, isto não impede o
jovem de se mutilar, afinal o alívio emocional proporcionado pela dor física é
maior. Entre os ferimentos mais frequentes temos: cortar-se, beliscar-se,
morder-se, furar-se, arranhar-se, queimar-se, cutucar feridas e arrancar os
cabelos. Muitos são os objetos utilizados, tais como facas, giletes, tesouras,
cacos de vidro, arame, estiletes, e vários outros objetos cortantes.
A
questão do viciar-se em se machucar tem a ver com as endorfinas liberadas no
ato de se provocar dor física. Cortar-se, por exemplo, instiga a produção de
adrenalina que, por sua vez, atenua a dor. As endorfinas opióides liberadas
pelo cérebro e que estão associadas às sensações de bem-estar causadas pelo
alívio da angústia e da tristeza. E como em toda raiz de um comportamento
viciado, temos a presença de compulsão. O auto agressivo, que assim o faz sem
manifesto desejo de chamar a atenção, sente dificuldades em controlar tal
impulso e se torna um dependente de lâminas e objetos cortantes como se fosse
um dependente de cocaína, álcool ou crack.
A
alma de um adolescente automutilador é uma alma automutilada. Como escreveu uma
jovem de 18 anos: “eu queria manter cada
corte em carne viva, a minha dor em eterna exposição”. Já há – e era inevitável
que não houvesse – um termo acadêmico para o fenômeno em questão que é “traumatofilia”.
E, embora não seja o desejo do jovem, a atração em se traumatizar, se machucar,
leva o adolescente às proximidades da intimidade com a morte, mesmo que seu
interesse seja o de projetar em seu corpo suas tensões emocionais como uma
maneira de dominá-las melhor. É um verdadeiro extravasamento do espaço psíquico
que transborda no corpo e deixa suas marcas e cicatrizes.
Não
consigo deixar de parafrasear um verso de uma letra musical de Chico Buarque (“as marcas do amor em nossos lençóis”) e
escrever que o adolescente automutilador é aquele que deixa “as marcas dos
sofrimentos em sua pele”. Embora, ao
modo alexitímico, há um grito surdo nisso tudo. Não deixa de ser uma maneira de
tentar comunicar e expressar sua dor na ausência das palavras e na falta de
quem lhe escute. Um falar escondido, mas que vai deixando pistas. É necessário
quem as ache e quem possa buscar entender quem as escreve em forma de tatuagem
que são as feridas em seu corpo.
Estranho
paradoxo este: na tentativa de cortar o sofrer se corta o corpo. Sim, há uma
significativa diferença entre a dor (que é do corpo) e o sofrer (que é da alma).
Embora ambas sejam aflições. A alma e o corpo do adolescente muitas vezes é
objeto de dores e sofrimentos intensos (e o que não é intenso na
adolescência?). Os conflitos e seus pesares se colam à pele por meio de ataques
corporais. Sim, eles necessitam de ajuda. Necessitam serem ajudados a transitar
por este estrito caminho cercado de abismos que é o caminho e o caminhar entre
a infância e a maturidade. O adulto do amanhã está se consolidando na confusão
de identidade e sentimentos que é a adolescência e seus adeuses.
Renato
Russo escreveu e compôs uma longa música chamada “Clarisse”. Ali ele diz: “E Clarisse está trancada no banheiro/E faz
marcas no seu corpo com seu pequeno canivete/Deitada no canto, seus tornozelos
sangram/E a dor é menos do que parece/Quando ela se corte ela se esquece/Que é
impossível ter na vida calma e força/Viver em dor o que ninguém entende/Tentar
ser forte a todo e a cada amanhecer... Eu sou um pássaro/Me trancam na
gaiola/Mas um dia eu consigo existir/E vou voar pelo caminho mais
bonito/Clarisse só tem catorze anos" Pois é, esta letra tem mais de quinze
anos, e o número de adolescente se automutilando tem aumentado. Urge estudar e compreender
mais o que se passa. Nossos futuros adultos irão agradecer.
Em
primeiro lugar é necessário entender que no “cutting” ou automutilação não há um comportamento masoquista (não o
prazer do sofrer que se busca, mas o prazer do alívio da dor psíquica) e nem
que é uma atitude tresloucada de chamar a atenção, afinal, lembremos, a pessoa
tem vergonha de suas cicatrizes que as faz sozinha e que tenta esconder. O adolescente
automutilador muitas vezes tem dificuldades de se expressar emocionalmente.
Esta própria dificuldade expressiva em muito contribui a priori para o futuro comportamento auto-agressivo. Daí se vê a
importância de possibilitar um espaço interpessoal para que o jovem possa falar
de si, inclusive e principalmente de suas automutilações. Para tal é
necessário, portanto, não ter uma postura judicativa frente ao transtorno, mas
sim compreensiva e tolerante, embora se busque a minimização das autoagressões
e até mesmo a sua superação e definitiva extinção. Tudo isto, evidente, em um
clima de acolhimento, sustentação (holding) e calor humano.
Lembremos,
mais uma vez, que o cutting é uma
maneira de linguagem não verbal cujo meio comunicacional é o corpo. Mesmo que
não tão intencionalmente assim, o adolescente ao se escarificar (do latim scarificare, que significa fazer uma
incisão superficial na pele) faz com isso um acting out (passagem ao ato) onde o significado de seus conflitos
internos escapa à capacidade simbolizante da própria mente. O ato automutilador
não deixa de ser uma espécie de apelo silente cuja demanda necessita encontrar
o receptor da mensagem. O ódio, a raiva, o medo, a insegurança, a tristeza, o
ciúme, a inveja, a angústia e outros afetos precisam achar seu espaço psíquico
na construção da autoestima do adolescente em formação. Quanto mais se pode
falar sobre si e seus sentimentos, menos se necessita do escape da atuação
automutilante. Quanto mais o sujeito do ato se transforma em sujeito dos seus
afetos, mais colorida será a adolescência, com todas as suas cores e menos
somente rubra.
Joaquim Cesário de Mello
Não poderia descrever melhor. Texto incrível e que relata uma realidade muito vigente e mais próxima do que imaginamos. O filme "Aos treze" demonstra esse fenômeno muito bem e a música de Legião urbana é fascinante. Realmente esse é um assunto pouco discutido apesar de ser bem conhecido. Parece não despertar muita atenção, e se assim for notamos que a comunicação e talvez o apelo que o jovem automutilador lança esta sendo não só silencioso, mas silenciado.
ResponderExcluirAh, e a fala da jovem de 18 anos referida a cima diz respeito a uma música de Leoni "50 receitas", caso não conheça.
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