CARTA
A UM JOVEM ESTUDANTE
Jorge Armando
(poeta, psicólogo e professor universitário)
“O homem superior atribui a culpa a si próprio; o homem comum aos outros”
Meu caro jovem Lucas,
Presumo-lhe jovem pelo teor e maneira de escrever,
principalmente pelo reluzente brilho de sonho e esperança. Sim, quanto mais
velho na vida vamos ficando em muito se diluem alguns sonhos e parcas vão
ficando as esperanças. Embora prossiga meu trajeto com sonhos e esperanças,
sinto que aos poucos vai ficando cada vez mais árduo preservá-los. Mao Tse Tung
dizia que a realidade é o oposto do sonho. Talvez seja, mas o que será do
humano sem o exercício contínuo do sonhar? Luto e me esforço para continuar
humano e não me robotizar.
Em suas reflexões e ponderações existem verdades,
assim como nas minhas igualmente. Isto lá significa que você está certo e eu
errado ou vice-versa? Não. A verdade é muito mais ampla do que nossas miúdas
visões podem alcançar. A verdade, comparativamente falando, é uma sinfonia complexa
e polifônica. Como você demonstra uma inclinação pelo chamado pensamento
oriental, evidentemente já deve ter conhecido o princípio budista denominado
“caminho do meio” que se define como o não extremismo, isto é, a moderação e o
meio. É como quando afinamos um violão, por exemplo, pois se esticarmos demais
as cordas elas rompem e se afrouxamos demais elas não emitem qualquer som. Em
uma linguagem mais pop: “nem eu nem você”. Os dois.
Sim, caro Lucas, estudante (no sentido de quem
literal e visceralmente estuda) é uma coisa rarefeita, todavia isto não é uma
questão de geração, afinal desde muito tempo isto é um fenômeno recorrente no
seio acadêmico, ou seja, nesta década, assim como na década passada e na outra
e na outra... temos mais alunos (aquele que só “estuda” quando obrigado pelo
professor ou pela escola) do que estudantes. Tem sido assim há muito tempo.
Acontece que, como você mesmo reconhece, o número de alunos matriculados nas
faculdades e universidades aumentou exponencialmente nos últimos anos. Digamos
que 20 anos atrás 20% do corpo discente fossem de realmente estudantes, Os
outros 80% são apenas figurantes, ops, digo, alunos. Digamos que tal proporção
(20 – 80) persista. Proporcionalmente é a mesma coisa, contudo
quantitativamente é bem diferente. Digamos que em uma IES qualquer houvesse 20
anos atrás cerca de 1000 matriculados e que hoje tenha 4000. Ora, 80% de 1000 é
800, enquanto 80% de 4000 é 3200. Mesmo que 20% continue 20%, o aumento
quantitativo de 400% é bastante considerável. Se antes eram 800 circulando
corredores, salas e pátios; agora são 3200. É como aumento de número de carros
na rua: o tráfego aumenta e congestiona-se o sistema viário. É muito barulho e
muito ruído, e para se conversar se tem que gritar.
Sim, caro Lucas, o que pode ser relevante para alguém
pode não ser para outro alguém. Entretanto, estamos estudando Psicologia, por
exemplo. Os sistemas teóricos (e técnicos) psicanalítico, humanista,
gestáltico, bioenergético, cognitivo, construtivista, sistêmico, interpessoal,
etc., são nascidos e desenvolvidos dentro do universo do conhecimento
ocidental. As origens gregas, romanas, latinas, renascentistas, anglo-saxônicas
e modernas fundam e lastreiam o conhecimento acumulado e progredido desde então
até os dias contemporâneos. Claro, também, caro jovem, que o mundo ocidental
por centenas de anos foi influenciado pelo oriente e encontramos nos antigos e
nos que nos antecederam ecos macedônicos, sumerianos, egípcios, babilônicos,
assírios, mouros, persas, chineses... O pensamento e a sabedoria mulçumana, por
exemplo, penetrou fortemente na Europa medieval entre a metade do século VIII e
início do século XIII. Só pra se ter uma ideia devemos aos árabes o
conhecimento matemático do “zero”. E quanto o “zero” revolucionou tanto a nossa
matemática quanto nossos pensamentos.
Mas venhamos e convenhamos como estudar e compreender
o que se está estudando sem o mínimo de conhecimento histórico do caldo
cultural que nos trouxe até aqui. Neste aspecto, caro Lucas, não é uma questão
de conhecer nome de pessoas ou personalidades, mas ideias. Afinal, as ideias
movem o mundo (ocidental e oriental). Nada contra o poeta chinês Li Bai - que
em versos cantou que por estar tão perto das estrelas não ousava falar para não
incomodar os que moram no céu – mas num dá né pra entender o freudismo sem
saber alguma coisa de Platão, Schopenhauer e física termodinâmica (aquela que
se estuda superficialmente no segundo grau).
Porém, caro jovem Lucas, não fiquemos aqui no pouco
espaço que temos nos pegando a picuinhas, pendengas, minúcias ou filigranas.
Não vamos fazer da temática uma competição entre Sêneca e Li Bai, nem muito
menos nos reduzamos a um conflito de gerações. Vamos nos ater ao que
decididamente interessa: a qualidade do ensino superior.
Ensino superior não se confunde unicamente com alunos
e estudantes, mas também professores, as próprias faculdades e universidades, o
sistema de ensino brasileiro e o sistema capitalista imperante em sua terceira
fase, o capitalismo de consumo. O capitalismo tem um dom que lhe é inerente, ou
seja, a de transformar, ao estilo Rei Midas, tudo que toca em lucro.
Conhecimento – ao menos o suposto e pretenso conhecimento vendido nas escolas
em geral – transformou-se em mercadoria. Compram-se mais diplomas e formam-se
menos pessoas. Vive-se hoje um acintoso comércio de títulos (vide o que fizeram
das pós-graduações). E todos parecem aceitar o convite à festa da simulação e
dos simulacros. Ou como escreveu Adolfo Calderón, em artigo na revista São
Paulo Perspectiva, “com a chegada das
universidades mercantis, pode-se afirmar que se institucionalizou o mercado de
ensino universitário”. A coisa toda parece que perdeu ou está perdendo seu
mínimo pudor.
A docência mesma tá se nivelando por baixo. Não
vê quem não quer ou não consegue ver pela própria miopia que a vida foi lhe
oferecendo. A mediocridade impera de ambos os lados, é só você, caro Lucas, vir
pro lado de cá do balcão pra ver o olhar perdido de muitos alunos frente a
qualquer coisa que lhes leve a pensar com um pouquinho mais de profundidade. Às
vezes é de dar pena. Já do teu lado do balcão deixo a você mesmo o comentário.
As graduações estão cada vez mais fracas – com
professores e alunos anoréxicos culturais – e as pós então, meu deus, é uma
repetência só, não havendo nenhuma inovação na maioria das vezes. E quantos
professores são apenas meros reprodutores de livros (quando muito), camuflados
em aulas coloridas de datas shows? Professores que realmente pesquisam,
produzem e praticam são poucos. O modelo vigente é filhote de uma política de
educação de massas e não uma educação para as massas.
O passado não é sinônimo de melhor do que hoje, pois
se assim fosse não teríamos as duas grandes guerras mundiais – só pra ficarmos
no século passado – o holocausto, Ruanda e o genocídio dos Balcãs na década de
1990, por exemplo. Porém, no passado que a cada dia que passa está ficando
remoto o modelo era alicerceado em outros paradigmas. Havia a ideologia de
missão, isto é, os aspectos financeiros eram meio e não fins. O aviltamento é
visível, meu jovem Lucas, e claro que em qualquer época houve e haverá bons e
maus alunos, bons e maus professores, boas e más faculdades, bons e maus
profissionais. Apenas que o lado mau da balança tá ficando mais pesado.
O que mais inquieta nisso tudo, meu querido Lucas
(permite-me assim chamá-lo?), é a passividade bovina de quem aceita por apenas
aceitar e tão somente. Não sejamos contra os que querem passar a vida ingênuos,
medíocres e confortáveis. Direito deles. Escolhas deles. Mas há os que manifestam
alguma motivação em conhecer algo mais do que suas cercanias e
circunvizinhanças, porém se iludem com o que lhes oferecem e pensam – de bom
coração – que estão realmente estudando.
O “homem unidimensional” a que se referia Marcuse (mencionado no
primeiro post) é o indivíduo instrumentalizado, massificado e produzido em
série como um produto qualquer saído de uma linha de montagem. Esse homem tecnocrata e consumista alienado é um ser
humano acrítico e iludido em sua própria ignorância pelo parco exercício
reflexivo em que vive, submerso em um sistema ideologicamente construído. O
próprio Marcuse certa vez respondeu a indagação do colega Adorno (outro
eminente membro da chamada Escola de Frankfurt, conhecido por sua teoria
crítica da sociedade) de que “é possível
fazer poesia depois de Auschwitz?". Sua resposta, Lucas, foi que sim,
pois "a arte só pode cumprir sua função revolucionária se ela não fizer
parte de nenhum sistema, inclusive o sistema revolucionário”.
Aos
alunos de boas intenções, mas mal alimentados de estímulos e instigações além
da superficialidade cosmética que as Instituições de Ensino Superior lhes
oferecem (não esquecer que a coisa toda já vem se arrastando desde lá atrás em
seu processo de socialização, educação e ensino) fica aqui o alerta e o sincero
aviso de que ainda há tempo, enquanto vida houver, para o conhecimento
germinante ao invés do pseudoconhecimento rasteiro e ludibriante do estudar
preguiçoso, sem esforço e sem dor. Assim, somente assim, podemos sair daqueles
supostos 20% e aumentá-los rumo a uma utópica maioria. O que seria de nós sem
os sonhos, não é mesmo?
Finalmente, prezado Lucas, vejo-o parecido comigo.
Não é porque estamos alguns anos separados ou abordando ângulos diferentes de
uma mesma poligeometria que não haja pontes entre nós e quem mais quiser
participar da festa. A verdade é mais ampla e mais complexa do que enxergam os
meus olhos e os teus. E se for verídico que no meio podemos melhor ver os
extremos e os caminhos que nos levam até eles, façamos o seguinte: “tu me ensina a fazer renda, eu te ensino a namorá”, como dizem estes celebrados versos do cancioneiro popular.
Considero, portanto, encerrada minha participação
temática sobre este imenso assunto aqui no blog. Que tal deixarmos de lado os
posts e marcarmos logo uma cervejinha para debatermos mais sobre tudo e um
pouco mais? Convidados estão todos os interessados na questão. Falta marcar o
dia, o horário e o local...