Ao ler o artigo recente de Joaquim Cesário
aqui no LiteralMente sobre o amor limítrofe (ou borderline, como queiram) na
personagem do filme “Betty Blues”, andei fazendo algumas reflexões sobre essa forma
desmedida de “paixão” na literatura. Não
fiz muito esforço para lembrar de alguns personagens-títulos como a já citada Medeia
de Eurípides (que comentei em outro artigo) Werther de Goethe, a Rainha da
Noite (da Ópera A Flauta Mágica”, de Mozart) ou Cass (do conto “a Mulher mais
Linda da cidade”,de Charles Bukowski), textos famosos em que essas personagens carregam
destemperos semelhantes em conseqüência
de comportamentos impulsivos e destrutivos – expressão redundante? – que as levam
à paixão e a desgraça. Com exceção do
personagem de Bukowski todas as
personagens são anteriores ao século XX, o que faz cair por terra a discussão
de alguns psicanalistas de que o “caráter”
bordelines faz parte da nova geração das patologias dos “ideais da
contemporaneidade” – um discussão caricata, repetitiva, para não dizer chata.
Portanto, limítrofes, borderlines ou “emocionalmente instáveis” já desequilibravam
as relações humanas desde antes de Freud, e mesmo com o surgimento de diversas
abordagens psicológicas eles parecem ainda imobilizar sobremaneira analistas,
psicoterapeutas e psiquiatras do mesmo
modo que no tempos do psiquiatra francês Philipe
Pinel que se horrorizou ao descrever essa personalidade como “manie sans delire”
(mania sem delírio) ou Esquirol que a descreveu “monomanias instintivas” (“monomaníacos
arrastados para atos que a razão e o sentimento não determinam, que a
consciência reprova e que a vontade já não tem força para reprimir”). O Horror
de Pinel era justamente a impulsividade,
atos de violência extrema sem, contudo, a integridade psíquica ou o entendimento da gravidade do ato estarem prejudicados.
Relacionar personagens fictícios com elementos
da psicologia ou psiquiatria, como fez com profundidade Joaquim Cesário, é
controverso, mas instigante – acredito, uma das características mais
interessantes do LiteralMente. Alguns especialistas, contudo, supõem que a
construção de personagem realizada por escritores ou diretores de cinema são
caricaturas de sujeitos inexistentes. Não estão completamente errados, mas eu,
particularmente, faço ressalvas a esses comentários. Penso que assim como há
bons e maus profissionais “psis”, existem, por outro lado, bons e maus
escritores – enfim, maus construtores de personagens –, e acho que do ponto de
vista narrativo-descritivo alguns textos literários são mais verossímeis – no
mínimo mais agradáveis – e trazem mais riqueza descritiva sintomatológica de determinados
sujeitos do que muitas anamneses psicológicas ou psiquiátricas. Cervantes com “D. Quixote” ou Gógol em “Diário
de um Louco” por exemplo, fazem uma descrição muito minuciosa com ótimo
entendimento do fenômeno delirante-alucinatório e, muitas vezes, mostram-se bem
mais preciso se comparados a muitos textos puramente conceituais. Esses personagens-caso
são geradores de várias leituras e interpretações e, em algumas situações, discussões polêmicas.
No
século XIX a vida de uma determinada mulher francesa provocou várias dessas discussões.
A história de sua vida poderia ser hoje vista como corriqueira ou banal. Chamava-se
Emma, uma mulher que na infância e juventude mergulhava num devaneio muito comum as adolescentes e
mulheres jovens: desenvolvia fantasiosos pensamentos de felicidade amorosa
provenientes de romances sentimentais da burguesia francesa. Emma morava numa cidade
de interior, era bonita e, ainda jovem, casou-se com o apaixonado Charles
Bovary, um jovem médico mediano de interior. Para surpresa do que se poderia
imaginar para a jovem esposa, a experiência do casamento seria vivida com
sentimentos de tédio, desilusão, desapontamento e desencantamento. A rotina da
vida conjugal ao lado do marido era bastante diferente do que idealizara para o
casamento – Emma, na verdade, vivia uma vida de idealizações. Ao contrário da literatura romântica da época,
a vida ao lado de Charles, convidava-lhe para uma vida comum, corriqueira e sem
os brilhos dos seus devaneios de adolescente. Emma Bovary, com a ideia de uma vida conjugal
condenada ao fracasso, insatisfeita, tenta resgatar, por assim dizer, as
antigas fantasias de que haveria homens, maridos e casamentos ideais. A partir daí sua vida é reconstruída, por várias
dissonâncias e aventuras extraconjugais, em que ajudaria a reerguer seus
desejos idealizados que, paradoxalmente, a levaria a um final trágico. Emma, no final
da vida, envenena-se por experienciar mais fracassos e desilusões amorosas.
A
história de Emma poderia ser interpretada psicologicamente com o que a psicanálise
chamou de caráter histérico, hoje denominado em psiquiatria como personalidade histriônica,
que teria entre suas características: uma vida dramática, repleta de jogos
sedutores, de “coquetismos”, pensamentos fantasiosos, carregando uma eterna
idealização nas relações amorosas seguida de um, não menos infinito, sentimento
de insatisfação. A histérica seria essa “eterna insatisfeita”. Emma seria, então,
esta histérica freudiana. Contudo, Emma jamais existiu.
Gustave Flaubert |
Emma é personagem-título do livro “Madame Bovary” de Gustave Flaubert – um dos
romances mais importantes da literatura mundial. Apesar de ser uma mulher jamais
existente, sua história foi motivos para polêmicas, proibições e condenações. O
que haveria de tão escandaloso nesse livro? Os conservadores e puritanos o consideravam,
na ocasião, pervertido e imoral, mas suponho que outra variante deverá ser
pensada: as idealizações e insatisfações
de Emma Bovary, são retratos falados das insatisfações não só da mulher, mas de todas as pessoas. Somos seres insatisfeitos e construímos fantasias
de amor romântico que são continuamente postas a prova. O fato
de Emma ter ido ao ato seria o elemento mais ameaçador, o que poderia gerar uma
ideia de que se somos como ela, somos todos transgressores ou adúlteros - o que é um equivoco. A edificação da personalidade compõe do desejo, do pensamento e do ato. o ato é imprescindível. não existem borderlines, histrionicos ou sociopatas sem atos. contudo, isso não nos impede de sermos semelhantes em desejo à Emma. Conta-se, que num determinado
momento, Flaubert irritado, tivera dito ao tribunal num de seus julgamentos: “Emma Bovary c'est moi" (Emma
sou eu)
Se
olharmos para todas as pessoas-personagens com transtornos de personalidade, algo, invariavelmente, nos incomodará. O incômodo,
contudo, vem mais da semelhança que da diferença.
Marcos Creder
Adorei o texto. Muito bom, muito bom mesmo.
ResponderExcluirAdoro Madame Bovary, quando li pensei por que não havia lido antes. Passei a compreender melhor a insatisfação constante que acomete algumas pessoas e que pra mim a mídia ajuda muito a alimentar.
ResponderExcluirO texto está perfeito! saudade de Emma, tão "normal".