Paulina
Souza (psicóloga- psicoterapeuta)
Instigada
pelo texto do filósofo e escritor Guilherme Saraiva, publicado no
blog LiteralMente em 27/05/2012, motivei-me a contribuir com meu
próprio exemplo sobre minha rápida passagem pelas igrejinhas
lacanianas da vida. Evidente que aqui abaixo é um depoimento
puramente pessoal, subjetivo, passional, todavia reflexivo e lúcido.
Sou uma descrente que um dia correu o risco de virar uma religiosa do
vazio.
Jovem, verde e ingênua, empolgada e cheia de ideias para mudar o
mundo, era assim que eu me encontrava em meados dos anos 90 quando me
formei em meu primeiro curso universitário. Quase como moto
contínuo, pois me achava magnetizada pelos textos freudianos,
aproximei-me de uma das várias instituições psicanalíticas
existentes à época. Para minha sorte ou meu azar ingressei em uma
de raiz, tronco, galhos, ramos e frutos lacanianos. De início,
embora a estranheza inicial, me vi seduzida pelo jargão e discurso
esotérico ali existente. Tamanha a sensação de minha ignorância
que me extasiava com os mais velhos e iniciados frequentadores em
suas empoladas falações. A “burrice” em que encontrava –
pensava eu – será depois superada quando compreender a fundo os
mistérios doutrinantes do saber supremo que se achava oculto por
detrás daquela verdadeira linguagem de gueto. Parecia que estudava
Cabala.
Passado
os momentos primeiros fui me dando conta que ali não se estudava:
ali se doutrinava e se adorava. Tudo girava em torno de um nome:
Lacan. Respirava-se Lacan, suspirava-se Lacan, transpirava-se Lacan,
comia-se Lacan. E haja Lacan, o tempo inteiro, sem exceção. E
quanto mais Lacan vivíamos, mais Lacan se ansiava. Lacan, descobri
às duras penas, é inesgotável. Aliás, infinito. Infinito, pois um
dia ele nasceu. Acaso não houvesse nascido, não tivesse um começo,
não seria infinito, porém eterno. E eterno (sem começo e nem fim)
somente Deus. Será que aquelas pessoas sabem que Lacan tem certidão
de nascimento?
E
quanto mais o tempo passava mais minha “burrice” aumentava.
Entendia cada vez menos do que já não entendia. Impressionante como
as demais pessoas (ou seriam fies?) se deliciavam com suas igualmente
“burrices”. Quando um outro (pequeno outro) abria o verbo
ininteligível as bocas caladas salivavam de prazer e gozo. Quanto
mais emaranhada e barroca fosse a verborreia mais suspiros de
orgasmos sublimados tínhamos. Era quase um bacanal em que corpos não
se tocavam, apenas eufemismos impenetráveis se intercambiavam.
Parecia que toda a atmosfera do ambiente estava coberta por um
invisível sombrear do Espírito Santo. Embora a sensação fosse de
uma Torre de Babel, todos conversavam voltados para o próprio umbigo
e pareciam se entender onde ninguém sabia exatamente o que estava se
dizendo. Talvez fosse a linguagem dos anjos e eu não sabia, pois
estava ficando cada vez mais ateia. Corria o risco de ser
excomungada, como de fato mais adiante aconteceu. Deixo aqui em alto
e bom som: minha excomunhão foi auto-imposta, não fui expulsa, me
exilei.
Claro
que tenho de reconhecer a contribuição de Lacan ao mundo
psicanalítico. Sua verve e certa genialidade geraram partículas de
conhecimento que nos auxiliam no desvendar da imensidão do psiquismo
humano. Acontece que seus adoradores transformaram a luminosidade
meteórica de sua passagem nos breus do universo da alma humana no
próprio universo em si. Para eles Lacan não foi um mortal que fez
sua parte em auxiliar a entender a alma e seus mistérios; Lacan é a
alma.
Certa
vez uma amiga, Marcela, em uma conversa despretensiosa dizia que
muitas das teorias são autobiografias. A de Lacan com muita certeza,
assim como a de muitos outros. E quem foi o homem Lacan? Com formação
em medicina legal Lacan antes de enveredar pela psicanálise
transitou pela neurologia e pela psiquiatria. No seu começar sofreu
influência de pensadores do porte de Alexandre Kojève e Hegel.
Psicanalisado pelo seu analista didático Loewenstein, sua análise
pessoal durou cerca de seis anos e encerrou-se de maneira inconclusa
e com atritos entre ambos (Lacan foi um neurótico não curado?). Com
a “revolucionária” proposta de que a psicanálise de sua época
havia se afastado das origens freudianas, propõe um retorno a Freud
através da mistura de linguística, estruturalismo, topologia e
lógica. Para uns um verdadeiro “samba do crioulo doido”.
No
livro “Imposturas Intelectuais”, Sokal e Bricmont expõem
a seguinte fratura do discurso lacaniano: é uma narrativa épica
impregnada de conceitos científicos e matemáticos. Para eles Lacan
abusa de utilizar recursos matemáticos e fragmentos científicos
cujo conhecimento ele pouco ou quase nada detinha, ou quando muito de
maneira vaga e superficial. Com o objetivo de encantar plateias
desnutridas Lacan vomitava erudição cheia de termos técnicos
irrelevantes, manipulando locuções e frases sem sentido ou nexo.
Segundo os autores há uma intoxicação com palavras, combinada com
uma suprema indiferença por seu significado. Uma pérola do estilo
Lacan de impostar: "Da
estrutura como o amálgama de um pré-requisito do Outro a qualquer
sujeito que seja".
Entendeu? Ou em termo atuais da era facebook: curtiu?
Em
sua pretensa pedagogia matemática Lacan mimetizou plateia como um
neo-Mesmer. Ao se oferecer não compreendido Lacan nos ofereceu o
melhor do seu gênio: deixar às gerações futuras o desafio de
compreendê-lo. Meio caminho para virar divino.
Mas
Lacan era humano. Personagem suntuoso de sua geração era um vaidoso
que se cobria de peles. Necessitava insaciavelmente de aduladores.
Enigmático e fascinante se expunha aos refletores da publicidade
como uma espécie de xamã. Inevitavelmente virou moda, depois
câncer, nos dizeres de Gille Lapouge. Vedete, seus seminários
atraíam multidões. A burguesia tem lá seus vazios e suas culpas.
Reconheçamos, Lacan foi um mágico das palavras não impressas.
Inteligente, fátuo, orgulhoso, de rara capacidade oratória,
coquete, caprichoso e vaidoso, extremamente vaidoso, era um homem
chegado a provocações, mas também um ser gentil e cortês, às
vezes, poucas vezes, até humilde.
Entre
boas sacações e inúmeras bobagens, pro bem e pro mal, Lacan
existiu. O homem morreu e suas ideias perpetuaram como um enigma da
esfinge. No hermetismo do seu linguajar e teoria ele tem,
indubitavelmente, sua marca na história. Não importa que em suas
sessões de análise fosse se tornando um analista cada vez mais
silencioso, em sessões cada vez mais curtas e cada vez mais caras.
Lacan foi, antes de sua triste velhice, “o cara”. Mas daí
metamorfosear “o cara” em Deus são outros quinhentos. E haja
livros introdutórios sobre ele, afinal a indústria não pode parar
e ainda há muito dinheiro pra se ganhar.
Afastei-me
daquele ambiente sacrossanto onde eram heresias coisas como Teoria
das Relações Objetais, Psicologia do Self, Psicologia Humanista,
Neurociência, Treinamento e Desenvolvimento de Habilidades Sociais,
Psicologia Interpessoal, Terapia Cognitivas Comportamentais, Teorias
Sistêmicas, Psicologia do Ego e outras facetas humanas do humano em
querer entender o humano. Afastei-me sem saudades daqueles cabelos
pintados de vermelho e ruivo que tanto desdenhava no auge da
meia-idade de minha passageira juventude e que hoje me vejo nos
espelhos da casa no colorido quase ruivo de meus próprios cabelos.
Lá ficaram algumas amigas que depois de décadas ainda leem livros
introdutórios sobre Lacan, enquanto a vida passa e o mundo muda.
Viciadas em seus ópios semanais cantam loas em que subliminarmente
entoam o seguinte refrão: só
Lacan salva.
Amém...
Gostei bastante do texto!
ResponderExcluir