Só ele dela sabe o cheiro. Os
outros conhecem apenas seu perfume e a essência das espumas e dos sais de
banho que lhe aromatizam a pele alva, límpida e branca, como branca é a neve.
Ninguém, além de si, sente a fragrância das flores que seu corpo ainda jovem
exala: cheiro verde das plantas e de suas imobilizadas sexualidades vegetais.
Fosse ele de menos idade, bem menos idade, haveria de pronunciar seu nome no
estalar da língua dos apaixonados, ao invés da boca sempre fechada, hermeticamente
aprisionando sentimentos impronunciáveis. No adiamento constante das
expressões, olha-a no diário dos seus dias com entristecidos olhos de
monólogos.
De onde senta, por detrás da
mesa e do trabalho, observa-a passar evaporadamente como uma noite de domingo.
Adora ver o deslizar de sua mão em seus cabelos compridos como se fosse dele o
toque e a carícia movimentando desejos. Quisera ser as roupas que a vestem só
para juntar-se ao corpo dela e abraçar-lhe com a suave fúria dos que acasalam.
Não importa se é linda ou bela, já que a possui tão logo ela passa, afinal
aquela iniciante mulher, que em breve também envelhecerá, ocupa-lhe o olfato e
a vista na intimidade negada de uma cumplicidade incorrespondida. Pois em todo
o tempo em que a presencia passar não foram mais que duas vezes que se falaram.
Na primeira, ele tossiu; na segunda, gaguejou – suspiros amorosos do infeliz
homem que somente ele conhece o amor. Porém, antes assim: não fosse o sonho
restaria o tédio a desertificar a alma e o pouco resto de sua memória.
O sonho o puxa para frente ao
mesmo tempo em que a memória o retrai para trás. Em meio a fluxos e refluxos é
ele alguém de instantes, encarcerado a um presente constantemente transitório,
precário de possibilidades. Sua atualidade é o curto espaço espremido pelas
virtualidades das lembranças e das expectativas em que vive seu invisível amor.
Quando amanhã o atual for ontem (toda atualidade traz em si sua inatualidade e
seu fim), carregará dela somente recordações de sonhos irrealizados, pois é ele
igualmente, e sempre enquanto ainda existir, um ser faminto de suas tantas e
tantas impossibilidades.
Ama-lhe ele em todos os
momentos dos seus momentos um incansável e silencioso amor amar de impresenças.
As exterioridades inexprimem interiores onde lá, na ruidosa mudez deteriorante dos
órgãos, conhece unicamente ele o fervilhar consumidor dos apaixonantes afetos.
No íntimo de si não há qualquer solidão, mas a companhia infinda daquela jovem
mulher que não fora do seu arbítrio desejar e com a qual ocupa-se inteiro
completamente, a tal ponto que não há mais sequer lugar para outro sonho que
não seja ela. Quem o presencia assim costumeiramente desacompanhado há de
confundi-lo com um homem só. Não sabem eles que nas praças, ruas, praias,
cinemas, restaurantes e localidades várias, encontra-se ela nele, na
irreciprocidade egoísta de um sentimento amordaçadamente lacrado. Quem o olha
assim costumeiramente só nunca há de saber que ali está alguém que vive
acordado para dentro, como se a vida lhe fosse o oposto de fora.
O amor dorme no coração do homem
um sono de insônias, somente velado por calados pensamentos que o devoram com
tamanha fome e martírio que lhe é a dor muito mais uma companheira. Ah,
soubesse ela daquele tanto afeto decerto surpreender-se-ia ao descobrir, por
detrás do silêncio de poucas amabilidades e diversos olhares discretos, a chama
impagável a queimar o peito anonimamente oculto no desconhecido de um homem,
cuja única função era estar ali, naquele obscuro canto de uma vida, amando-a
com a limpidez transparente quase visível das coisas invisíveis.
Quem sabe um dia (o que seria
de nós acaso não esperássemos dias?) ela o veja enfim em sua singularidade
infinda e aceite então suas mais inconfessáveis ardências. Quem sabe um dia,
quando a maturidade já lhe encobrir o cheiro adocicado das flores e ele não
mais estiver sentado em seu birô de anos, possa ela enxergar no habitual do seu
discreto canto o vácuo deixado pela inevitável ausência, e sentir saudades
daquele amor que de tão verdadeiro jamais ousou fazer-se notícia. Quem sabe um dia...
Joaquim Cesário de Mello