domingo, 11 de fevereiro de 2018

Bartleby: O Estrangeiro



Os literatas costumam dizer que as histórias do mundo  já foram contadas, apenas as repetimos com pequenas variações. Os enredos originais são releituras de roteiros anteriores e esses roteiros, variantes das lendas e mitos de nossos ancestrais. Podemos, então, afirmar que não há histórias originais no mundo das artes? De fato, quantas “Odisseias”, quantos “Romeus e Julietas”, quantos “Hamlets”, quantos “Reis Lears”, quantos “Édipos Reis”, quantos “Quixotes” ou quantas “Bovarys” são reescritos na literatura. O “osso” da repetição, eterno temor dos escritores é incansavelmente roído. O escritor criativo é aquele que tenta, na melhor das hipóteses, pervertê-lo deixando-lhe algumas ranhuras, sem, contudo, fraturá-lo (a fratura desfaz o “osso” e leva consigo o enredo e seus conflitos). Quanto as ranhuras, podemos chamá-las de estilo.

Há quem, ingenuamente, se esquive do texto de Machado de Assis porque aqui e ali encontrou um personagem da literatura russa ou um formato narrativo semelhante aos de Eça de Queirós; há quem deixe de lado Clarice Lispector pos acreditar que plagiou os existencialistas, há os que escamotearam Nelson Rodrigues por inspirar-se em Ibsen. Reafirmo-lhes, contudo, que não há obras originais: Dante inspirou-se no texto de São Paulo, Virgílio em Homero, Flaubert em Cervantes, Garcia Marques em Kafka, Mary Shelley no Mito de Prometeu. Uma das obras mais importantes da literatura não tem originalidade alguma: “Fausto”. Goethe se inspirou no mito popular para escrevê-lo.  Thomas Mann, depois de dois séculos, escreveu “Dr. Fausto” acrescentando ao mito nuances e elementos literários ao mito.


Pois se não há originalidade, toda obra é plágio? Não. Plágio é cópia, é fac-simile, é “print”. A literatura precisa de estilo.  Se a história se repete, a estética acrescenta-lhe um, ou vários, pontos.

Personagens também se repetem. Um personagem não é uma pessoa, mas um mosaico de sujeitos. Não é fácil encontrar na vida cotidiana um personagem literário, pois, em verdade, eles não existem. Existem apenas como metáforas falantes. E, foi na metáfora do nihilismo, do vazio existencial, do esvaziamento do sentido de viver, que dois consagrados personagens da literatura se imitaram ou se repetiram: Bartleby (da novela “Bartleby: O Escrivão”, de Herman Melville) e Mersault ( do romance “O Estrangeiro” de Camus).

Reli estes textos e jamais havia imaginado a semelhança. As narrativas, contudo, são bem diferentes e essa diferença dará o clima, o tônus, aos textos. O texto de Melville tem como narrador um senhor advogado dono do escritório que contrata Bartleby como copista; Mersault, o personagem de Camus do “O Estrangeiro” é o próprio narrador. Bartleby está diante e em vias de confronto com o chefe, ao se portar sua passividade; o outro, Mersault, atiça o mais enigmático dos personagens: nós, os leitores.

Bartleby e Mersault são personagens que, esvaziados de desejos e plenos arrogâncias, despertam, nas suas indiferenças, um sem número de inquietações. São dois sujeitos que se unem na apatia e na insolência e, essa atitude de blasé, provoca no  narrador (em Bartleby) e no leitor (em O Estrangeiro) um nihilismo incontinenti, e escancara as portas de lugares até então encobertos pelos véus de nossas ilusões. Bartleby e Mersault são representações desse deserto de significações, são personagens e metáforas do indelével e do inefável. São mortos-vivos funcionais,  são a parte silenciosa de todos nós que, por ausência de palavras, nos angustia.

O sofrimento humano se expressa pela angústia. Angústia como sintoma, angústia como fenômeno existencial, angústia como resultado da ausência de sentido. Os conhecidos ataques de “pânicos”, de certo modo, são a manifestação dessa angústia/ansiedade - de repente, o sujeito é tomado pela ideia de mortificação ou de enlouquecimento e assiste, simbolicamente, à sumária cena do seu aniquilamento – ou como diria Kierkgaard, do seu desespero. Pois o desespero é a fronteira, o parapeito, entre a  angústia  e a morte.

E assim esses dois personagens vem  nos inquietar e nos  tirar do lugar, reservando-nos um silêncio atormentador que  nos expõe aos nossos conflitos. Seus silêncios se desdobram em ruídos ou barulhos interiores - onde terminam as palavras, inicia a imaginação.

Nelson Rodrigues num pequeno conto da "Vida como ela é" traz  um personagem igualmente silencioso, um sujeito prestes a se casar com uma jovenzinha, que, feliz, nada tem a se queixar do futuro marido, com exceção de seu jeito silencioso. A jovem mulher nos preâmbulos desse incômodo, ouve, como consolo, de uma de suas tias que o melhor marido é aquele que não fala. Ela, contudo - desculpem o spoiler - obedecendo o drama Rodriguiano, terminar por cometer suicídio, sob o argumento de que o silêncio do noivo, já marido, era-lhe insuportável e lhe gerava pensamentos atormentadores. Um deles, a ideia de que o rapaz tramava o seu assassinato. Não suportou, se matou. A angústia, mas uma vez, vem anunciar a fronteira da morte, do aniquilamento, e, antes que isso venha a ocorrer, elimina-se a morte pensada, interrompendo-se a vida.

Destemidos da ideia de vida e morte,  Bartleby e O Estrangeiro, do mesmo modo, fazem uma missa de corpo presente dos descampados da condição humana.

Marcos Creder

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