Um
tema muito discutido na assistência à saúde é um dos pontos que considero
crucial e, que talvez, seja um dos problemas mais significantes, e
paradoxalmente mais desvalorizados, dos profissionais que atendem na
Clínica ou nos hospitais. Trata-se da relação "profissional de saúde"
(médico, psicólogo, fisioterapeuta etc) - paciente. Acredito que dessa
relação pode demandar vários acertos, mas também muitos erros -
chega-se a cogitar em artigos especializados que mais da metade dos erros médicos, por exemplo, acontecem na tensão da relação
médico-paciente. Contudo, para a maioria das pessoas, os erros que esses
profissionais cometem, ocorrem por diversos motivos: incompetência técnica, inaptidão, má formação, má
remuneração, descaso, falta de “compaixão " e de princípio éticos.
Argumenta-se também que o próprio modelo de assistência em saúde
"animaliza " seus profissionais. Esse argumentos são plausíveis e
inquestionáveis, mas penso que nessa relação profissional - paciente
ainda cabe mais um elemento que vai mais além da postura técnica, ética ou
das questões das políticas assistências - embora, como disse, essas
tenham relevância significativas.
Há
uma tensão mais subjetiva que deve ser melhor esmiuçada e incluída
nesse rol de desacertos. Esse "mais além" está no fato de que, no
fenômeno do adoecer, não existe uma objetividade como se tem - ou dizem
ter - em outras áreas do conhecimento. O adoecimento está na dimensão
de um sujeito (sempre) singularizado em sua dor, sofrimento e em suas
fantasias aterradoras relacionadas a vida e a morte. Esse temor às
incertezas do corpo e da mente fazem com que, muitas vezes, se utilize
de defesas psíquicas remotas ou infantis. Isso porque o corpo se tornou
(ainda mais) frágil e suscetível e fez com que o sujeito revisitasse os
tempos igualmente frágeis de sua existência: a sua infância.
Naturalmente na infância se é mais dependente, mais exposto, o corpo é
mais manuseado e submetido aos seus cuidadores. O julgamento que a
criança faz dos cuidadores são ambíguos e arcaicos. É um misto de um
ser, um“outro”, todo poderoso, que é capaz de promover e aliviar as
dores e os desconfortos. São bons e ruins, acolhedores ou ameaçadores. E assim se reedita essa relação quando se adoece, pois se precisará de
mais cuidado que o habitual.
Freud dizia categoricamente que o processo de adoecimento, seja ele qual for, tendia a provocar no sujeito reações regressivas - uma retificação importante é de que essa regressão não é um caminho de retorno no tempo, pois não se vai ao passado, mas o caminho do infantil ainda presente, um infantil contemporâneo - uma espécie de "passado" escondido nas recordações prontas para serem representadas. Para validar isso não é uma tarefa tão difícil. Quantos não ficam dengosos, manhosos, ressuscitando os antigos mimos da infância quando doentes? ou ainda, quantos não ficam birrentos, rebeldes, " trelosos" durante um tratamento médico? No mesmo passo que a doença reedita esses sentimentos, no outro lado, no lugar do terapeuta se retifica muitas vezes as figuras do antigos cuidadores que podem assumir as funções da amabilidade ou da tirania, ou ainda, da impotência ou da onipotência - ressalto que não há neutralidade em qualquer profissionais, haverá sempre identificações, projeções que poderão ser úteis ou danosas ao tratamento. ha texto de Luiz Cláudio Figueiredo, Implicação e Reserva, que estabelece um manejo dessa transferência. Essa variante da não neutralidade, muitas vezes, explica que um mesmo remédio ou procedimento pode ser venenoso ou terapêutico a depender de quem o prescreveu.
O psicanalista húngaro Balint defendia, ainda no início do século XX, que assim como as medicações, os médicos na relação médico-paciente também teriam “efeitos colaterais”, “subdosagens”, “intoxicações” - E, nesse presente texto, acrescento, não só os médicos, mas todos os profissionais de saúde. Há profissionais que se ausentam ou se presentificam excessivamente, há aqueles, que na generosidade excessiva, terminam por reforçar os ganhos secundários que as doenças propiciam - a grande dificuldade, na verdade, é encontrar a medida certa, a medida terapêutica que garanta ao paciente a condição de sujeito. Para que isso venha de fato se efetivar, será preciso ter entendimento de que assim como esse sujeito doente se fragiliza, o outro que o assiste deve cortar as asas de sua onipotência e de fantansias igualmente infantis. Esse encontro entre a fragilidade (paciente) e a onipotência (profissional) muitas vezes desencadeia equívocos, graves equívocos.
Escuto uma história desde de que era estudante de medicina. uma história que parece mais uma anedota, mas que seria perfeitamente possível dentre as tensões da relação médico-paciente.
Um obstetra numa maternidade pública, ao atender uma gestante, que estava sangrando excessivamente, haveria dito para o assistente que “aquela paciente estava ‘chocando’ “(um jargão médico que se refere ao estado de choque). Ao ouvir isso, a paciente queixosa, disse: "o senhor diz assim porque sou pobre, porque se fosse rica estaria tendo menino”. O que se pode pensar dessa cena? de que havia um abismo social e subjetivo entre o paciente e seu médico; o médico acreditava na compreensão do seu vocabulário, e de que a paciente reeditava seu lugar de excluída.
Marcos Creder
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