A alma quer sempre crescer, crescer sempre. Quem internamente a limita é o Ego que vai se formando dentro do psiquismo desde cedo. Dependendo do Ego que se configura na mente humana, a tendência natural da alma ao crescimento (princípio vital) pode ser tolhida, inibida e atrofiada. Tal entravamento, por sua vez, vai provocar um conflito de forças antagônicas. Por um lado um Ego inibido e inibidor. Por outro um crescimento reprimido. Deste embate silencioso resulta uma espécie de dano colateral que é o sofrimento, a angústia e a depressão. O cerceamento do evoluir da alma cobra em algum momento seu preço.
Sim, somos naturalmente narcisistas. A psicanálise clássica nos demonstra que o psiquismo em seu estado primevo funciona pelo que convencionou-se chamar de Princípio do Prazer. Em pleno narcisismo imperante a alma humana se crê (ou se sente) onipotente; porém isto é uma mera ilusão psíquica, uma miragem narcísica. O psiquismo (alma) em seu gradual contato com a realidade, através da experiências vivenciais, vai percebendo que nem tudo pode e nem sempre pode no exato instante que se quer. É aqui que nasce e se desenvolve na alma algo que não existia no início: o Ego (o Eu humano). A alma vai aprendendo a lidar com a realidade (Princípio de Realidade). Em sua insaciabilidade de expansão a natureza humana passa a buscar conhecer a realidade que lhe é mais forte. Melhor conhecendo-a passa a utilizar seus conhecimentos para se ampliar sobre ela. O homem não muda a realidade, mas utiliza-se de seus princípios, leis e funcionamento para transformá-la. O homem cria a cultura, a sociedade, a ciência e a tecnologia. Assim, chega ao avião e ao foguete do qual fazíamos menção acima.
Não iremos hoje destacar as ilusões narcisista da alma humana. Todos as temos. Uns mais outros menos. Nosso destaque é sobre a potencialidade de crescimento reprimida. A alma é sempre chamada a crescer. O seu não desenvolvimento, o seu emperramento, ou o seu crescimento desequilibrado muito provavelmente gerará patologias psíquicas, entre elas a neurose. Se tudo flui, como já afirmava Heráclito, se tudo muda sempre, o que não muda é a neurose. Ela é feita de repetições. Gosto de dizer que sempre é aquilo que não evoluiu. Se houver algo de neurótico em nós é porque esse algo carece de evolução.
Escreve Fernando Pessoa: "entre o sono e o sonho/entre mim e o que em mim/é o que me suponho/corre um rio sem fim". Um rio que corre sem fim. Isto é a alma humana enquanto natureza humana. Assim como o universo continua se expandindo, a humanidade se nunca tiver fim não sei onde terminará. A humanidade, ao longo de sua existência, vem com altos e baixos, avanços e recuos, evoluindo. Porém, subjaz nela o seu mais puro egoísmo e brutalidade. De vez em quando a humanidade avançada falha e surge mais uma vez a barbárie. Freud visualizada a alma humana como se fosse um cavalo conduzido por um cavaleiro. O cavalo é mais forte e maior que o cavaleiro, mas este, por saber montar e segurar as rédeas, é quem conduz o cavalo levando-o para lugares em que ele quer ir. Quando o cavaleiro, por algum razão, deixa escapar as rédeas ou não sabe montar direito quem o conduz é o cavalo, levando-o até a lugares onde ele não quer ir. Pois é, a alma em seu estado mais puro e selvagem é o cavalo e o cavaleiro é o Ego ou a sua parte racional. Acontece que alguns Egos seguram demais o cavalo, geralmente por medo. Quando assim o faz tanto o Ego quanto o cavalo deixam de avançar. E ambos, limitados em excesso, adoecem. Limitar o que nos é possível crescer nos faz sofrer.
A experiência é o potencial da existência. O potencial de um indivíduo apenas seria potencial se não houvesse a experiência de agir. A tendência inata ao crescimento de que tanto falava Winnicott somente pode ganhar contorno na vivência. Quando nos protegemos muito acabamos por inibir a "continuidade do ser", surgindo assim uma hipertrofia de quem poderíamos ser. E lá venho eu mais uma vez com Fernando Pessoa: "fiz de mim o que não soube/e o que podia fazer de mim não o fiz". O verdadeiro eu da pessoa é, dessa forma, negado. E vive-se uma vida com um crescimento interrompido.
O quadro ao lado reproduzido é A BALSA DE MEDUSA, feita por Théodore Géricault, atualmente exposta no Museu do Louvre em Paris. Baseada em uma tragédia real - quando em 1816 a fragata Medusa naufragou e algumas dezenas de sobreviventes se espremeram e lutaram por viver em uma pequena balsa 27 dias em alto mar, onde de 147 pessoas restaram apenas 15 - na tela pode-se observar diferentes atitudes humanas que vão do desânimo, do desespero e do desânimo até a força da esperança. Nem toda alma humana, exposta em momento cruciais da vida, perde a força de sempre querer ir em frente. Atentem que na pintura não se vê no horizonte nenhum navio para resgatá-lo. Ainda assim a alma é capaz de ser persistente. Porém, nem sempre, nem todos. Alguns sucumbem ou se deixam sucumbir.
A raiz grandiosa da alma humana é fundamental ao próprio processo de crescimento da mesma. As necessidades narcísicas nos acompanharão ao longo da vida. Todo ser humano traz consigo resíduos desse narcisismo original. Heinz Kohut (psiquiatra e psicanalista austríaco, fundador da Psicologia do Self) considerou o narcisismo uma força constitucional, subentendido como ambição e idealização. Para Kohut enquanto nossas ambições nos empurram nossos ideais nos puxam. Eis, pois, dois importantes combustíveis à alma humana: nossas ambições e nossos ideais.
A alma humana emana vontades e desejos. Desejos de exibir-se, assim como desejos de expandir-se em busca de novos horizontes além, não são perniciosos ao psiquismo, pelo contrário. Para Kohut um self saudável é aquele no qual as ambições exibicionistas são experimentadas e comodamente orientadas por ideais confiáveis e atingíveis, possibilitando assim a realização de talentos e habilidades. Isto - afirma Kohut - encontra-se na base da autoestima e nos dá um sentido criativo e alegre à vida.
Um narcisismo saudável, por assim dizer, é base de uma autoestima adequada, embora muitas vezes estejamos contaminados com a ideia de narcisismo como algo patológico. Ambição, egoismo, orgulho, por exemplo, são termos associados frequentemente a aspectos negativos. Creio que a questão deva ser olhada no sentido quantitativo, isto é, um pouco de egoismo, ambição e orgulho, são componentes inerentes ao amor-próprio e a autovalorização que o sujeito tem de si. Dosagens mais excessivas, estas sim, são componentes encontrados em alguns transtornos de personalidade e algumas psicopatologias conhecidas. Estudos sobre o self observam que o narcisismo normal e/ou sublimado encontra-se no cerne do sentido que o self de uma pessoa se dá a si mesmo.
Ambição e idealismo, portanto, são importantes fontes de energia que nos leva a explorar o mundo, a vida, a realidade e suas oportunidades em termos de crescimento e evolução psíquica e social. Uma boa e elevada autoestima nos permite mais autoconfiança e coragem. O medo de errar é suplantado e assim avança-se e aventura-se além dos limites limitados pelo medo inibidor. Trabalhos de pesquisa como os de Kashdan e Steger (intitulado Curiosity and pathways to well-being and meaning in life: Traits, states, and everyday behaviors) demonstram a necessidade para a alma humana de correr riscos e explorar o desconhecido em busca de sua autorrealização e bem estar subjetivo.
"A alma humana é como a água: ela vem do Céu e volta para o Céu, e depois retorna à Terra, num eterno ir e vir".
(Goethe)
Joaquim Cesário de Mello
Quero ser só ALMA
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