Vez ou outra trago o
tema que relaciona as escolhas de nossas vidas com nossas demandas
psíquicas, sejam elas, essas escolhas, boas ou más. Ouvi, certa
ocasião, um diálogo entre crianças. Conversavam a respeito de suas
futuras profissões e pude perceber que suas preferências privilegiavam a fama,
o destaque, o sucesso e... as satisfações mais toscas. Obviamente que
só criança falariam tão espontaneamente a respeito de desejos tão
particulares. Uma delas disse, Eu quero ser ator, e se imaginou
beijando todas as meninas e mulheres de beleza e sucesso consagrados,
outra disse que gostaria de ser juíza para prender as pessoas que a
importunavam no colégio, uma terceira disse que queria ser psicóloga
para saber da vida dos outros e a quarta e última, disse que queria
fazer medicina para que não precisar levar injeção, pelo
contrário, iria aplicar injeção em um monte de pessoas que a
ameaçavam com essa punição.
Essas descrições ocorridas na linguagem da infância provocam
risos. Contudo, se esses futuros “profissionais” usassem do
mesmo argumento para ingressar no mercado de trabalho, certamente seriam vistos
como pessoas antiéticas, ardilosas e de caráter duvidoso. Algo
aconteceu entre a infância e a idade adulta que os fizeram recusar, ou melhor renunciar, os interesses pessoais espúrios e grosseiros que porventura venham a ocorrer em cada nuance de uma atividade e, desse modo, uma pergunta costuma se fazer:
o desejo infantil realmente se dissolveu na medida em que foi tornando
socialmente inadequado? As respostas: sim e não. Há algo no desejo que se reprime e algo
que persiste, e seu desvelar sob a influência da repressão gera desdobramentos não mais de
caráter grotesco, a ideia original se dissolveu em palavras e atos
de melhor convivência social.
Freud disse em trecho de sua obra que as
crianças eram “perversas polimorfas”, que seus desejos
transgressores são expressos de maneira escancaradas e que o limite
dessas transgressões ou a renúncia a "ir as vias de fato" de suas
aspirações, criou o contrato que estabelece normas e proibições entre as pessoas, enfim, a Lei - usarei em maiúsculo. Seriam, desse modo,
perversos aqueles que mesmo conhecendo a Lei, a transgride - a transgressão, por si só, faz parte do rol de seus
desejos e satisfações. A maioria dá vazão a esses desejos originais renunciados, reelaborando soluções, ou pactuações, em que se tornam disfarçadamente, mas sem dano social. Guarda-se desses elementos perversos, pequenos resíduos inócuos
- cabe lembrar que a palavra perversão deve se distanciar aqui do
sentido puramente moral. Muitos dos grandes sujeitos admirados na
humanidade trouxeram na sua bagagem uma fantasia perversa infantil,
há alguns personagens que os psicanalistas fizeram
estudos biográficos. São cientistas, pensadores escritores, líderes
que trouxeram importantes contribuição à sociedade. Conta-se que,
por exemplo, Dante teria realmente se apaixonado por uma, bem mais
jovem, mulher de nome Beatriz, casada e que que veio a falecer de
forma súbita - uma mulher que, inclusive, mal conheceu o escritor
-que ainda não era celebridade. Isso não impediu que Dante pusesse
a jovem personagem em várias incursões na “Divina Comédia”,
onde seria fonte não só do seu amor, mas de um amor humanitário e
transcendente - Lewis Carol ou especialmente Nabokov foram menos
sutis ao escreverem “Alice no País das Maravilhas” e “Lolita”,
histórias que, se não fossem ficção, seriam delirantes ou
perversas, criminosas. As palavras ficcionadas distancia do ato, e sem ato não ha perversão.
Por falar em livros,
há uma publicação recente que, se não me recomendassem à leitura, jamais
iria folhear texto com título tão insosso, mas
“Anatomias” - assim mesmo no plural - não é um livro médico, tampouco da biologia ou da ciência natural. "Anatomias - uma História Cultural do Corpo Humano" de Hugh Adersey-williams, conta a história, ou as
histórias, da visão que temos do corpo desde o
início do processo civilizatório - o corpo da imaginação, o corpo da visão religiosa e filosófica - o corpo não é só uma imagem mas atribuição subjetiva. O livro fala de um corpo que se
torna invisível, por mecanismos repressores semelhantes aos que ocorrem na vida infantil. O corpo possível, diagramado e imaginado, nunca corresponde a sua forma na realidade, a subjetividade humana o deforma, venda-nos os olhos. A única forma de mostrar uma frestas entre os esses olhos está justamente no desejo. Sempre me perguntei porque a justiça para ser "justa" ela tem que ser representada pela cegueira. Há um monumento que está exposto numa praça na Cracóvia, na Polônia, intitulada de "Eros de Olhos Vendados" confeccionada pelo escultor Igor Mitoraj. O surpreendente é que a imagem transgride o próprio título, os olhos da imagem não estão vendados, Ideia interessante do escultor de provocar ironicamente aqueles que admiram a escultura, subvertendo o conceito de cegueira. Eros deixa-se escapar em menor ou maior grau das vendas.
"Anatomias" não apenas disseca o corpo, mas os diversos momentos daqueles que o pesquisaram. destaca todos os dogmas e pecados que circulam no seu imaginário. O corpo em geral é romantizado e idealizado por cientistas e gravuristas. O corpo real é mais complexo, é indesenhável, não segue padrões, não há corpo ideal. Uma informação interessante refere-se ao corpo da mulher, que, por muito tempo, foi depositário de todo tipo de perversão e pecado. O corpo feminino foi por muito tempo indescritível - fala-se que o primeiro tomo anatômico feminino data do século XVII. O livro traz a ideia de um corpo que nos pertence, mas que é o nosso maior tabu. Tabu também para aqueles que o examinava - por muito tempo era ato transgressor fazer dissecações de cadáveres - alguns países permitiam que só os copos de criminosos poderiam ser submetidos a esse procedimento. Com a escassez de corpos, haja vista o rigor da lei - ou Lei - surge o cientista obcecado por "matéria-prima". O livro traz, em algumas passagens, histórias grotescas de anatomistas que teriam provocado mortes em pessoas para estudar seus corpos - enfim, chega-se novamente ao terreno movediço da transgressão, como se o saber perdesse seu lado sublime e voltasse para o início da vida de cada, e fizesse soar forte no seu lado funesto.
"Anatomias" não apenas disseca o corpo, mas os diversos momentos daqueles que o pesquisaram. destaca todos os dogmas e pecados que circulam no seu imaginário. O corpo em geral é romantizado e idealizado por cientistas e gravuristas. O corpo real é mais complexo, é indesenhável, não segue padrões, não há corpo ideal. Uma informação interessante refere-se ao corpo da mulher, que, por muito tempo, foi depositário de todo tipo de perversão e pecado. O corpo feminino foi por muito tempo indescritível - fala-se que o primeiro tomo anatômico feminino data do século XVII. O livro traz a ideia de um corpo que nos pertence, mas que é o nosso maior tabu. Tabu também para aqueles que o examinava - por muito tempo era ato transgressor fazer dissecações de cadáveres - alguns países permitiam que só os copos de criminosos poderiam ser submetidos a esse procedimento. Com a escassez de corpos, haja vista o rigor da lei - ou Lei - surge o cientista obcecado por "matéria-prima". O livro traz, em algumas passagens, histórias grotescas de anatomistas que teriam provocado mortes em pessoas para estudar seus corpos - enfim, chega-se novamente ao terreno movediço da transgressão, como se o saber perdesse seu lado sublime e voltasse para o início da vida de cada, e fizesse soar forte no seu lado funesto.
Marcos Creder
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