O bairro
de Boa Viagem, nos anos 1950, era um lugar onde os recifenses iam
passear, passar um dia feriado, um Sábado ou um Domingo, ou veranear
nos meses mais quentes do ano. Até 1960 praticamente não se morava em
Boa Viagem, seu nome, inclusive, surgiu da Igreja da vila dos
pescadores, cuja santa homenageava aqueles que passavam por terra ou por
mar, a Senhora dos Navegantes ou da Boa Viagem. Com o crescimento da
cidade vieram os lançamentos imobiliários que atendiam ainda ao público
de veraneio. Foram lançados os edifícios Holiday, Acaiaca e Califórnia,
todos com apartamentos pequenos, quitinetes, para uso apenas nos
finais-de-semana. O bairro, contudo, cresceu rapidamente e alguns
desses antigos lançamentos foram desviados de suas vocações, de ingênuos
apartamentos veranistas transformaram-se gradualmente no que se
chamava a época de rendez-vous, expressão francesa que significa
“encontro”, mas que no Brasil, especialmente em Pernambuco, significava
lugar de prostituição ou festa promíscua. Os apartamentos pequenos
dificilmente acolheriam uma família.
Morei
por toda minha infância em Boa Viagem, do jardim de minha casa eu
podia contemplar o edifício Holiday com sua arquitetura modernista
curva, como se formasse uma concha em direção ao mar. Apesar da beleza
arquitetônica, o edifício já nessa época era decadente e já começava a
carregar a má fama. Dali, diziam os vizinhos, não saía nem entrava
boa alma, “pessoas de bem.” O prédio – continuavam os vizinhos – era
habitados por vagabundos, bêbados, bandidos e putas. Quem passasse
pelas imediações do Holliday corria sérios riscos. Podia tomar um banho
de urina e de outros dejetos, podia ser constrangindo pela áspera
abordagem das prostitutas, ser surpreendidos por vigaristas – havia
histórias de assassinatos, inclusive - e, por fim, podia ser atingidos
pelas pessoas que se atiravam das janelas e parapeitos dos seus
dezessete andares. Desses suicidas, em especial, pensava eu ainda na
infância que algo estranho ocorria nesse prédio, pois nele havia, como
se diz na medicina, um tropismo ou uma “atração” por pessoas que tinham
pouco apego as suas vidas. Especulava-se que existia um número elevado
de suicídio entre seus moradores ou frequentadores. E não eram poucas
histórias que se contava sobre essas pessoas; geralmente nos meses de
Novembro e Dezembro havia surtos de suicídios no Holiday, dele saltavam
mulheres e homens dos mais diversos ofícios e sofrimentos, desde
dançarinas de boates, garçons aos pianistas de restaurante, ou apenas
frequentadores habitués que participavam dos bacanais, das orgias e
que, do mesmo modo, amanheciam esmagados no piso de concreto ou no
jardim. Os contadores de histórias eram ardilosos, às vezes cruéis, e
não economizavam na descrição minuciosa dos suicidas, contavam detalhes,
eventualmente em tom de chacota, de como os corpos haviam sido
mutilados com as quedas e das possíveis motivações para o ato – nesse
momento, havia muitas histórias que se deformavam em fantasias, que
partia muitas vezes da imaginação, do julgamento, ou quem sabe, do
desejo do narrador. A maioria costumava dar um tom moralista e religioso
que iam desde as maldições diabólicas às vinganças divinas, aos
“trabalhos feitos”, às “encomendas” e feitiçarias. interpretavam o
ambiente do prédio , por si só, como lugar amaldiçoado, carregado de
“má energia”. Havia também aqueles que davam as explicações mais
românticas: as pessoas haviam provocado suas morte por conta de grande
desilusão amorosa, traições, decepções, ingratidão. Por último um ou
outro, talvez os mais racionais, dirigiam suas explicações aos
fracassos econômicos, as dívidas e ao desemprego. Enfim, havia muito o
que dizer, e tudo o que se dizia trazia como pano de fundo
justificativa de que o ato era fruto de uma expiação frente a errância
de cada um. E as errâncias geravam fraqueza de espírito que culminava
no ato desesperado de se atirar nesse Vale sombrio da morte - O Vale dos
Suicidas. Afinal, quem são esses habitantes desse Vale? Que vale é
esse?
Na
Divina Comédia, Dante situa numa cosmologia imaginária, os lugares onde
estariam todos os malfeitores e benfeitores da humanidade, os pecadores
e os virtuosos, os crentes e os hereges. A Divina Comédia classifica
as contingências das almas humanas e as personifica em vários
personagens da história medieval e da mitologia clássica é, por fim, as
distribui em três livros, Inferno, Purgatório e Paraíso. E
naturalmente que é no Inferno, especificamente no 7o. Círculo, que
Dante situa o Vale dos Suicidas. Nesse Vale, esses pecadores são
transformados em áridas árvores, cuja folhagem, secas e envelhecidas,
alimentam as hárpias - aves de rapina da mitologia grega, que tem face
e seios femininos. Ao adentrar no Vale, em que se é surpreendido pelos
troncos gementes, Virgílio adverte ao herói (Dante): “as coisas que
verás ao meu discurso deixam infecundo”. Enfim, faltam palavras ao
poeta para relatar tamanha tragédia. A descrição é de um lugar
assustador, sombrio, indolente. Essa visão dada por Dante ao destino
do suicidas não é criação da Divina Comédia, pelo contrário, faz
parte da maioria do pensamento religioso no que diz respeito a morte
auto-provocada – dificilmente se verá uma religião que seja indulgente
com o suicídio. O judaísmo afirma que ato peca contra Deus, no
cristianismo a alma vai, como acreditava Dante, para o inferno; os
espíritas argumentam que uma alma que desencarna desse modo, fica
perdida na sua própria consciência, padece em sofrimento. Não faz muito
tempo que não se enterrava suicidas em cemitérios cristãos, tampouco
rezava-se a missa de 7o. Dia.
Conta-se
que a atriz Dorothy Hale, sob argumento de que faria uma longa viagem,
havia convidado seus melhores amigos para a festa da despedida em seu
apartamento em Nova Iorque. Na festa havia convidados ilustres como a
pintora Dorothy Swinburne e Margareth Caso, além de celebridades da
Itália e milionários da noite nova-iorquina. Ao término da festa,
Dorothy , sempre altiva e sorridente, acompanhou o último casal ao
teatro para assistir a uma peça de final de noite. Após seu retorno,
soube-se no dia seguinte que havia cometido suicídio. Dorothy havia se
atirado, ainda na madrugada do dia 21 de outubro de 1938 do seu prédio
na Hampshire nas imediações do Central Park. Estava lá mais uma vez,
como os suicidas do Holiday, mutilada pelo salto – saltara para o
Vale. Vestia-se de preto, aliás, o seu vestido preferido, com um
ramalhete de rosas amarelas que lhe fora presenteada por um possível
caso amoroso. Deixara uma carta com várias recomendações e providências a
serem tomadas no seu sepultamento.
Se
tomarmos os julgamentos das pessoas comuns, dificilmente alguém dirá
que aqueles que acabaram com a própria vida sofriam de algum
transtorno mental – o que é, em realidade, muito mais frequente. A
explicação comum assemelha-se as dos suicídios ocorridos no Holiday ou
em Nova Iorque, enfim, na pobreza ou na riqueza, no auge ou na
decadência, na juventude ou na velhice, na saúde ou na enfermidade, as
pessoas se matam por fraqueza da alma, amores perdidos ou desiludidos,
luxúria, lascívia, errância, maldição. Esquecem do sofrimento psíquico,
da angústia, da melancolia, enfim, do adoecimento depressivo. Esse
entendimento moral faz com que os amigos e parentes escondam seus
suicidas e se envergonhem – muitos se sentem culpados, outros desprendem
uma raiva inexplicável. Nessa vergonha, faz-se uma maquiagem, muitos
relatam acidentes, descuidos, imprudências. A famosa lenda urbana de que
alguém atirara por acidente na própria face, enquanto limpava uma arma,
ou, que tomou veneno por engano, ou ainda, que se desequilibrou da
varanda de um edifício, enfim, são todas as histórias que tentam poupar a
biografia do suicida, mas que, de certo modo, guardam sobremaneira
preconceitos. Preconceito por pensarem insistentemente no ato de
natureza moral.
A história de Dorothy Hale ficou
conhecida por conta de um acontecimento, na verdade uma tentativa de se
minimiza a tragédia com uma homenagem. Uma amiga quis presentear a
inconsolável mãe da atriz com uma obra de arte e contratou ninguém mais
que a já famosa pintora Frida Kahlo para lhe prestar essa última
consideração em sua curta trajetória de vida – Dorothy tinha apenas 33
anos. Frida foi imprudente e fria, não fez trajetória alguma, mas
desenhou o trajeto do salto da atriz Dorothy até o solo, a verdadeira
tragédia. Muitos interpretam o quadro como grotesco ou como uma
grosseria – supõe-se que a mãe de Dorothy jamais teve conhecimento da
pintura.
Um fato importante no ato de Dorothy,
e que é expresso na pintura de Frida Kahlo, é o endereçamento
simbólico que, não só a atriz, mas os suicidas, deixam na cena da
morte. No caso de Dorothy havia ramalhetes e o vestido, em outros mortos
deixa-se, além de cartas, outras iconografias que o representem. Suas
intenções são cifradas, e formam paradoxos... afinal, o que queria
dizer a atriz ao carregar flores românticas para a morte? Há algo de
irônico, de sarcástico que se sobrepõe ao seu sofrimento. Esses são os
paradoxos. Imagine que muitos se matam, como Lady Macbeth, ao se
defrontarem com seu fracasso – fracasso construído em cima de várias
auto sabotagens, que a fez, como diz Freud, “fracassar pelo êxito”. Mas
há outros paradoxos. Que dizer da própria Dorothy Hale ao vê-la se
atirar no centro do mundo, no endereço do sucesso e da prosperidade,
especialmente para uma atriz? Acredita-se que cerca de 1500 pessoas já
se atiraram da Golden Gate na Califórnia que se traduz pelo delicado
título de Ponte Dourada. Surpreendente!
Não
precisamos ir tão longe, pernambucanos conhecem a fama dos suicídios na
Universidade Federal, no prédio do CFCH que são as iniciais do inspirado
título: Centro de Filosofia e Ciências Humanas – onde, inclusive,
abriga o departamento de psicologia – são intermináveis os paradoxos...
Olhando
de longe o prédio Holiday - que se traduz, ingenuamente, por “feriado” -
descobri, depois de tantos anos, que, por trás disso, do gesto – pois
as palavras se foram - dos atores dessa tragédia cotidiana, não há
sequer, como disse Dante, “esperança de morte”. Não pensaram encontrar
Deus ou o seu perdão, não pensaram em renascer como uma fênix, por
sequer as cinzas lhes colorem. São pessoas que profundamente
deprimidas, restam-lhe o idioma da morte. Não há Vales, sequer o verbo
valer. Tratemos e escutemos nossos melancólicos
Marcos Creder
Marcos Creder
3 comentários:
Sensacional.
Muito bem expressado tudo ai então...Parabéns!
A matéria parece faltar com a verdade quando afirma ou sugere que a maioria do pensamento religioso condena o suicídio.
Não há nada na Bíblia contra o ato. Pelo contrário. O Macabeu Razis é considerado herói por ter se suicidado para não ficar escravo do inimigo.
Os judeus essênios e zelotes também são considerados heróis por terem feito o mesmo em relação aos romanos e Buda sugeriu o ato para a aniquilar o sofrimento e elogiou pelo menos dois (suicídios).
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