
Que perguntas nos resta fazer diante do inesperado? Será que Erêndira segredava esse ardiloso plano? Os mais pragmáticas responderiam sim, e, acrescentariam algum comentário que desqualificasse a protagonista: má, egoísta, oportunista. Mas há outra hipótese: a de que Erêndira só se deu conta do seu desejo que só pôde emergir no momento da morte da avó. A morte descortinou e abriu janelas para novos horizontes do seu querer. Essa é a hipótese que eu defendo, levando em consideração que não apenas a personagem, mas todos nós, não sabemos ao certo o que desejamos.
Desejos, contrariando lógica racional, não obedecem as mesmas regras do nosso querer. Desejamos sem saber que desejamos, denegamos com frequência nossos desejos - quantos disseram “eu não quero” e paradoxalmente se viram justamente desejando o "não querer"? ou pelo contrário, quantos disseram "eu quero", e não era bem isso que desejavam? Desejar muitas vezes revela o impensável, eventualmente o inaceitável, como se as palavras desejo proibido, caíssem num pleonasmo, e fossem condensadas sumariamente na palavra, única palavra, desejo. Que impensável é esse que não se revela? ou ainda qual é a índole do desejo? se se explora os desejos mais escuros e escusos, poder-se-ia dizer que, ao menos, aqueles não revelados, não são muito cordatos. Obedecem a um regramento que estão em frequente tensão com o contrato social. O ser humano é dado a transgredir o que ele mesmo estabeleceu como regra. Se um dos mandamentos é não matarás, um ou outro tentará ir adiante e desafiar essa lei - em larga escala o não matarás é um denegação da condição humana - para os pesquisadores da pré-historia temos fama de assassinos. Há muito tempo ouvi um psicanalista dizer que essa dialética do desejo/renúncia faz com que o próprio desejo se torne, enfim, um elemento sempre tendente a transgressão - o desejo tende a andar de mão dadas com as suas interdições. A maneira mais sublime de nos distanciarmos desse oráculo às avessas se estabelece com a criação artística. A arte faz do desejo uma metáfora do possível - observe-se que o leitor de Êrendira é conivente e também desejante da morte da velha.
A índole de Êrendira é a índole da humanidade? Cabe aqui uma ponderação. Êrendira é uma abstração, é uma personagem inscrita (e escrita) na subjetividade de seu criador. Seu criador. Gabriel Garcia Marques, fez como todos fazemos, atenuamos os nossos desejos mais tacanhos em invencionices (a criação). O que salva, engrandece e transforma a humanidade está na sua capacidade de criar. A criatividade amansa nossas forças instintivas individuais tornando-as sociais. A criação sintetiza os nossos desejos entre o desejar propriamente dito e o impedimento. A criação revela uma possibilidade de enxergar, com alguma nitidez, o que se deseja.
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Gabriel Garcia Marques conta-nos outra história em outro texto: um padre ao tentar salvar a alma de uma jovem do demônio - com o sessões de de exorcismo - encontra a maldade, a doença, a angústia, o desatino que estavam na jovem, e em especial, nele mesmo. Entre os demônios, havia o mais avassalador: o desejo apaixonado do padre pela silenciosa personagem. O nome do livro: “Do amor e outros demônios”. Recomendo.
Marcos Creder
Um comentário:
Excelente texto!
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