DA PRECARIEDADE DA VIDA E OUTRAS FINITUDES
Somos minúsculos frente ao curso da vida. Temos hábito de dizer que a vida passa, mas a vida, por já existir antes de nós e depois de nós, ela não passa para o indivíduo, é o indivíduo que passa por ela. A finitude nos acompanha desde o nascimento. Nascer, por si mesmo, já representa um morrer. Quando um feto é expelido ou retirado do útero morre-se no parto um estilo de vida (uterino) e um mundo (aquático); nasce-se uma nova maneira de se viver (extrauterina) diante de um mundo até então novo e diferente (aéreo). Vai-se respirar através dos pulmões pela primeira vez, vai-se sentir fome, calor e frio, vai-se começar a ver a luz pela primeira vez, vai-se chorar e o mundo nunca mais será como antes.
Perdemos
inicialmente o útero, após o seio e o colo. No caminhar da existência muitas
outras perdas ocorrerão, desde a perda da infância, do corpo infantil e dos
pais idealizados. Sequencialmente perde-se a adolescência, a juventude e a
vitalidade. Perde-se objetos, lugares, momentos, pessoas, funções e assim se vai,
ou melhor, assim vamos pela vida afora. Até que chega o instante derradeiro em
que se perde a própria vida e, finalmente, se morre. Literal e vivencialmente é
como diz o poeta: “isto o que ganhei:
essas perdas. Isto o que ficou: esse tesouro de ausências”.
A
memória é o eixo central na exiguidade de nossas existências, afinal somos hoje
quem somos graças a todas as nossas perdas e a capacidade humana de se ver e se
recordar como uma continuidade de vida. É como disse o também poeta
pernambucano Manuel Bandeira: “com o
tempo o coração da gente vai se transformando num cemitério”. Eu mesmo,
certa vez, escrevi em uma crônica (O Homem à Margem da Cidade, in Cronistas de
Pernambuco, Editora Carpem Diem/2010) “caminhava agora pelas ruas com a
inabalável certeza de que chegaria, afinal chegar era o prazer de depois
partir. Pisava sem pressa o chão das calçadas e os asfaltos da cidade que era
sua. Nela nasceu, cresceu e haverá um dia em que nela se enterraria. Quando por
baixo dela viver, outros a pisarão com o mesmo cuidado com que pisa sua
infância, seu passado, sua história... Os pés do adulto que o corpo leva
trilham as pegadas do menino insone e traído”.
Embora saibamos que tudo nos esvai como
fumaça, tudo passa na voraz fugacidade do tempo, sonhamos ilusória e
inutilmente com a permanência. Mas eis que vem, inexorável e sempre implacável,
a transitoriedade ligeira do existir e nos deixa pasmos e nostálgicos como
Manuel Bandeira em sua Evocação do Recife: “a
casa de meu avô.../Nunca pensei que
ele acabasse!/Tudo lá parecia impregnado de eternidade”. Somos todos, sem
exceção, passageiros de uma vida que existida é somente passageira.
Quanto mais se
vive mais aumentam as lápides do cemitério do coração. Vamos aos poucos, dia
após dias, convivendo mais com os mortos do que com os vivos. E se ainda assim,
sobrevivermos aos nossos vivos, eles nos restarão como lembranças a compor o
mosaico da memória. Em sua velhice o filósofo político italiano, Norberto
Bobbio, escreveu que “somos o que
lembramos”. Eu diria, complementando, que nossa alma é feita de sonhos,
lembranças, ideias, desejos, sentimentos e perdas. Não há um ser humano
qualquer que já não tenha passado por suas perdas. E ainda continuará passando.
O psiquiatra e
psicanalista alemão Erik Erikson foi um dos estudiosos da psicologia do
desenvolvimento que mais contribuiu sobre o tema. Não se estuda Psicologia sem
conhecer Erikson e é dele o destaque para as “oito idades do homem”. O
crescimento psicológico se faz integrado com o ambiente social e cada etapa ou
estágio nos prepara para os enfretamentos dos conflitos adaptativos inerentes à
vida. O crescer é feito de perdas. Necessitamos elaborar satisfatoriamente
nossas perdas para que o viver não nos pese de maneira depressiva. Necessitamos
melhor lidar com as mudanças, as transições, as tristezas e seguir a vida. O
luto nos acompanha seja por perdas reais, seja pela gradação de papéis (tais
como: de solteiro para casado, paternidade, aposentadoria, etc.), seja pelo
próprio envelhecer. O luto, como processo elaborativo das perdas, tem papel
fundamental na vida humana.
A vida humana, a
vida de um indivíduo humano, é um instante. Um instante espremido entre duas
escuridões, como refere o escritor russo Nabakov: “a nossa existência é um curto-circuito entre duas eternidades de
escuridão”. Do breu uterino ao breu do túmulo. Este é o nosso percurso e
caminho.
Freud também nos
deu sua contribuição no belíssimo texto Sobre a Transitoriedade (1915), quando
relata um passeio com um amigo por um jardim. O amigo manifesta o desagrado e o
incômodo com a finitude humana e Freud a partir desta conversa especula sobre
“a exigência humana de eternidade”. Ensina-nos ele, no refletir sobre a
caducidade do que chamamos belo, que é exatamente porque as coisas são
transitórias que a amamos. Então passa a discorrer sobre o tempo que passa e o
tempo que permanece, sendo este último não somente o tempo da memória e das
lembranças, mas o tempo que só é tempo no tempo depois, isto é, o tempo do
inconsciente. No conjunto inteiro de sua portentosa obra Freud distingue a
consciência da inconsciência, e ao invés de que um leitor apressado sobre o
tema possa pensar (o passado como um causador do presente) o que passa torna-se
assim e então uma realidade psíquica, visto que o inconsciente é psiquicamente
o lugar onde os tempos se amalgamizam.
Sêneca (4 a.c.? –
65 D.c) é outro que dedicou parte de sua vida a se debruçar sobre o que ele
chamou de “brevidade da vida”. Em cartas dirigidas ao personagem Paulino o
filósofo pondera com sabedoria sobre a natureza finita da vida humana e a nossa
relação com o rápido transcurso temporal da existência. A forma como utilizamos
a fluidez do tempo que nos cabe é que a transforma em lamento ou fortuna.
Escreve ele: “Não temos exatamente
uma vida curta, mas desperdiçamos uma grande parte dela. A vida se bem
empregada, é suficientemente longa e nos foi dada com muita generosidade para a
realização de importantes tarefas. Ao contrário, se desperdiçada no luxo e na
indiferença, se nenhuma obra é concretizada, por fim, se não se respeita nenhum
valor, não realizamos aquilo que deveríamos realizar, sentimos que ela
realmente se esvai”. Para Sêneca a vida pode até ser breve, mas o que a
prolonga é a arte do seu uso.
Ou como também
nos ensina o mestre budista japônico-americano Gyomay Kubuseo - mesmo velho Carpe Diem latino - : “quando
o sol brilha, desfrute-o; quando a chuva cai, desfrute-a. Todas as coisas nesta
vida – deixa que venham e deixe que se vão”. Tá, já sei o que está pensando
meu porventura avulso leitor, que é fácil falar ou escrever, porém praticar e
sentir são outros tantos. É vero. E aqui reside a nossa grande busca: viver a
vida como um artista e fazer de cada instante o instante. Dessa forma, evitando
me alongar demais, pois a vida tá passado e eu tenho uma cervejinha gelada me
esperando e uma mulher a ser beijada, transformo a partir de agora este texto
em passado com os versos do poeta pernambucano Carlos Pena Filho: “... lembra-te que afinal te resta a vida/com
tudo que é insolvente e provisório/e de que ainda tens uma saída:/entrar no acaso e amar o transitório” (grifos
nossos).
(originariamente publicado em 26/08/2012)
(originariamente publicado em 26/08/2012)
Entre desejar viver e as vezes desejar nunca ter existido, sinto minha vida completa, as vezes completa até demais. Embora sem rumo certo, embora sem grandes obras ou sonhos maiores, sem desejo de eternidade, é minha vida, repleta de mim, de coisas que gosto, coisas que detesto, contradições e dia a dia. É minha vida, dias gosto, dias não, mas no geral a sinto repleta e intensa.
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