ALÉM DOS LIMITES DE UM AMOR FRONTEIRIÇO
Talvez algum transeunte do
LiteralMente blog vá se indagar por que este presente texto ressuscita um filme
de 1986. De início gostaria de deixar claro que nem sempre o que é novo,
contemporâneo ou atual seja sinônimo de qualidade e pertinência, pois se assim
fosse o que seria dos clássicos. Aliás, vejam, por exemplo, um livro acadêmico
recente. O que temos em suas referências bibliográficas? Os clássicos, ora. O
que é mesmo bom, profundo e belo não fica datado nem cria mofos e traças. Tem
coisas novas que já nascem com bafios e ranços, isto é, já nascem velhas,
descartáveis e obsoletas.
Preâmbulos
à parte, vamos falar do que nos prontificamos falar: da passionalidade amorosa
que pode nos arrastar ao abismo. O filme a que fiz menção tornou-se um fenômeno
cult nos anos 80 e foi baseado num romance de Philippe Dijan de mesmo nome, ou
seja, “Betty Blue”. O filme dirigido por Jean-Jaques Beinex conta a história de
um jovem pacato zelador chamado Zorg que, em suas horas vagas, busca realizar
seu grande sonho que é a de vir se tornar um escritor. Em meio a sua vidinha
pacata e um tanto monótona surge a estonteante Betty por quem Zorg
inevitavelmente se apaixona e por ela é correspondido.
Betty
é uma linda mulher de temperamento instável e inconstante, com fortes
inclinações de humor explosivo. A relação entre ambos logo se torna um tórrido
relacionamento de afetos intensos. Em sua volatilidade afetiva Betty oscila
bruscamente entre o carinho e a agressividade, e Zorg é gradualmente compelido
e atraído por aquele vulcão indomável de emoções cuja força catalizadora e
dominante, em meio ao furor de seus arroubos destrutivos, por sua vez,
impulsionam Zorg a realização de seu sonho de publicar livros e ser escritor.
Viver
a montanha russa de sentimentos que uma mulher como Betty proporciona é de
início, excitante e empolgante, afinal o cotidiano morno e insosso de Zorg
sofre toda uma transformação. Ao invés da segurança retilínea e morgada com que
antes conduzia sua vida (ou será que era a vida que o conduzia?) tem-se agora a
variabilidade aventureira de um relacionamento afetivo-sexual energético e
intenso. Se a vidinha de Zorg era de cor bege, transformou-se em vermelho
quente. Todavia toda essa intensidade tem um preço, pois ela é calcada numa
intensidade frouxa e exaustiva. O incêndio que a paixão proporciona incendeia
não somente os corações e mentes dos amantes, mas também tudo ao redor. Aqui a
expressão de Marx toma outro sentido: “tudo
que é sólido se desmancha no ar”.
Betty
é inquieta e densa emocionalmente. Nada parece saciar sua fome ou preencher
seus vazios crônicos. A evolução do seu amor mais do que intenso excessivo e
explosivo na verdade acompanha o próprio enlouquecer da personagem. O
descontrole intermitente transforma-se em uma instabilidade contínua e
avassaladora. A enxurrada de sentimentos e emoções que antes deram o tom de
inconformismo frente a uma maneira de existir medíocre converte-se em uma
irreversível insustentabilidade frente à própria vida. O sonho dulcorizado da
idealização romântica metamorfoseia-se no pesadelo sufocante da loucura.
Um
leitor minimante atento já haveria de perceber que a personagem de Betty,
embora impressionante e efusiva, transpirava em seus comportamentos,
contradições e condutas, o que conhecemos como “Personalidade Borderline”. A
instabilidade, toda a intensidade, a disforia e o humor frequentemente reativo,
conjugada a impulsividade, a inquietação interminável, e acentuada
irritabilidade e agressividade, bem como comportamentos ameaçadoramente de
risco, descrevem com nitidez um Transtorno de Personalidade Borderline. A
atratividade empolgante que a maneira de ser de Betty suscita oculta uma Medéia
onde Zorg gradualmente se enreda para mais adiante se ver dentro de um olho de
furacão.
A
personalidade Borderline tem como caraterística marcante a forma descompensada
como estabelece seus laços afetivos. Seu estilo repentino e impulsivo, seu
saltear brusco de humor e a maneira massiva e afluente com que investe em seu
objeto amoroso, inevitavelmente resultará no comprometimento da própria relação
amorosa. São pessoas cuja personalidade se fundou numa enorme e insaciável
necessidade de ser amado, e por mais amado que seja encontra-se constantemente
inseguro e insatisfeito. Sentimentos de rejeição, solidão e depressão são panos
de fundo de uma personalidade afetivamente oscilante, emocionalmente ambígua e
facilmente irritável. A vivência de amor Borderline é bastante passional,
veemente e exaurível. Paixão, ciúme, obsessão, necessidade de aceitação e
incondicionalidade amorosa, dependência, entre outros, permeiam a paixão que se
transforma em uma espécie distorcida de amor.
Se
muitas das relações amorosas estáveis começaram em nome de uma passageira
paixão, um amor patologicamente fronteiriço inicia-se no fulminar ardente e
entusiasmante da paixão, porém dela não consegue sair ou amadurecer. Parece uma
relação fadada ao aprisionamento das endorfinas, mormente a adrenalina. Este
intenso laço afetivo tem um termo para dele se falar, embora não o utilizemos
comumente, que se chama limerence ou
limerância. A limerância é quando a paixão vicia. É o extremo da própria
paixão.
A
oferta de um amor aventureiro e eternamente jovem fascina e encanta. É como
entrar num carrossel de sensações intermináveis. Porém, assim como a delícia de
um orgasmo sexual que tanto nos dá prazer duram poucos e rápidos segundos, caso
o mesmo se perpetuasse por minutos, horas ou dias, sucumbiríamos à falência do
organismo que não aguentaria suportar o excesso contínuo
de gozo. Por que então haveria de ser tão diferente assim com nossas emoções e
sentimentos? O cumular excessivo e sem intermitências só pode nos extravasar
como um copo cheio d’água.
Inicialmente
muitas vezes atraentes, chamativos, fascinantes e interessantes, por detrás
dessa fachada provocativa e convidativa esconde-se latente uma intimidade
sofrida de uma quase loucura cuja fronteira é tão perto e tão tênue que um
passo a mais é puro abismo sem volta. A instabilidade visível na expressividade
emotiva revela uma auto-identidade inconsistente e muitas vezes dependente,
masoquista e manipuladora. A exuberância oscilatória e lábil das emoções torna
uma pessoa que sofre de transtorno de personalidade Borderline um verdadeiro
“hemorrágico mental”.
Se o caro leitor (a) está
interessado em arriscar estabelecer uma relação amorosa de fortes emoções (se
quer ter muitas histórias pra contar a seus futuros netos) e está a fim de se
surpreender e viver um romance cheio de imprevisibilidades e reviravoltas fique
à vontade, afinal estima-se que 2% da população geral apresente quadro clínico
compatível com a classificação F60.31 do CID-10. Se você quer sair da calmaria
entediante de sua vidinha insossa e realizar seu sonho cinematográfico, ou se
você quer alvoroço, agitação, susto e dramaticidade, então é só comprar a
passagem e boa viagem. Só não esqueça que o piloto avisa que pela frente haverá
muitas e fortes turbulências e que há sérios riscos do avião cair. Good Luck...
Originariamente publicado em 12/08/2012
Originariamente publicado em 12/08/2012
Joaquim
Cesário de Mello
Por que tudo tem que ser vermelho? gosto tanto do beje. Por que tudo que é rotineiro é chamado de medíocre? quente, fogo, paixão... morno, ensosso, beje, sem graça... vida pacata, vida morna, vida que se delicia em si mesma, sem necessidade de mudar de cor, mas ainda assim vida.
ResponderExcluirPois é, Alice, o bege também é uma cor muito bonita e que combina com tantas várias outras cores. Aliás o bege é uma tonalidade que tem proximidades com o branco e o amarelo. Eu, particularmente gosto de tomar banho morno, já num gosto de cerveja morna. Se nem tudo é bege, também nem tudo é vermelho ou amarelo ou laranja. A vida é colorida, assim como também pode se usufruir dos instantes pacatos e serenos. Talvez o importante não seja a cor em si, mas como nos relacionamos com ela, isto é, com tranquilidade ou intranquilidade. Prefiro a tranquilidade da maresia de uma beira-mar do que a adrenalina de uma motanha-russa.
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