PSICOSE, VIOLÊNCIA & ARTE
A relação que
se faz entre transtorno psíquico e a violência, ou o comportamento agressivo, é
tema de muitas discussões, inclusive, esse é um dos pilares do estigma que se
constrói nos acometidos de doenças psiquiátricas – doenças? Transtornos? Distúrbios?
Há, na realidade, vários estigmas e eu acrescentaria que existem certos
estigmas que se encobrem nos eufemismos – pergunto-me porque justamente na área
de saúde mental o paciente tem que ser chamado de usuário? Em outras áreas da
medicina o sujeito-paciente deixa de ser cidadão?
Voltemos, contudo,
à violência. As estatísticas apontam que a grande maioria dos atos de violência
ainda partem da “sensatez” e da normalidade. Estudos apontam que o índice de
agressividade aumenta nesses “normais” nas situações em que utilizam
substâncias psicoativas, álcool em sua maioria, mesmos sendo utilizadores
ocasionais e não dependentes. O que faz, então, pensar que os psicóticos, os
esquizofrênicos ou os paranóicos sejam agressivos e assustadores? Na verdade,
crimes de violência acontecem todos os dias e poucos são noticiados, os que se tornam
notícias são aqueles que tem alguma peculiaridade no implausível, ou são aqueles
atos aparentemente injustificáveis e, é justamente nesse aspecto “bizarro” que os transtornos psiquiátricos visitam as
páginas de jornais.
Os atos
agressivos dos psicóticos quando ocorrem – pude observar ao longo de alguns
anos – são geralmente decorrentes de uma atitude predominantemente defensiva. Em
geral, em situações de crise os pacientes se sentem acuados pelos seus objetos
de perseguição , fogem, escondem-se, trancam-se e, eventualmente, agridem para
se defender. Não descarto, contudo, a possibilidade de que ocorra agressividade
por parte de algumas dessas pessoas. Ressalto que não é tão comum como o senso
comum estabeleceu e numa eventual ocorrência, não significa que seja “para
sempre” ou que a agressividade deixa de ocorrer apenas quando cessam os surtos.
Nos anos 1940 -
1950 perambulava pelas ruas do Rio de Janeiro um homem negro, alto e excêntrico,
vestido de maneira desleixada. Ele visitava igrejas, principalmente, a igreja
de Santo Antonio e lá, ou mesmo na rua, profetizava várias catástrofes apocalípticas
que estariam por vim com palavras, muitas vezes, incompreensíveis. Diziam que
esse sujeito teria sido expulso da marinha e que vivera algum tempo como
empregado de uma residência, numa casa no bairro de Botafogo. Numa de suas
andanças, por um motivo desconhecido, mostrou-se verbalmente agressivo com as
pessoas que passavam em via pública, e naquela ocasião, e por essa razão, foi “recolhido”
para a colônia Juliano Moreira, famoso manicômio carioca. Artur, esse era seu
nome, ficou internado por incontáveis anos – até resto de sua vida. No
manicômio, tornou-se mais agressivo – ou já seria? –, e por essa razão, freqüentou
várias vezes solitárias, celas, e fora contido por faixas imobilizadoras e
isolado dos demais pacientes. Quanto mais se tentava conter, mais Artur explicitava
a agressividade. Muitos pacientes ou mesmo funcionários o temiam e tinham um
contato distante, cauteloso, inclusive, os visitantes e estagiários eram advertidos
sobre sua periculosidade.
Num determinado
momento de sua internação, na cela forte, desfiando fios de sua própria roupa,
Artur começou a confeccionar estruturas bizarras que se assemelhavam a pequenas
maquetes “embalsamadas”, estruturas com linha e textura bordadas à mão, somadas
a outros objetos imprestáveis – latas, colheres quebradas, pedaços de cano, tábuas
etc – a harmonia entre esses objetos construíam
estruturas esteticamente interessantes. Artur, daquele momento em diante, começara
a construir o que denominou o “Dia do Juízo Final” e, assim como Rodin que fez
as “Portas do Inferno” inspirado em Dante, iniciou a longa construção de uma
produção artística. Artur acreditava que estava construindo um novo mundo e que
as pessoas que seriam salvas – médicos, psicólogos, enfermeiros, auxiliares técnicos,
pacientes, visitantes – tinham que deixar seus nomes escritos naquelas
estruturas. Na construção dessas instalações eram utilizados vários utensílios domésticos
que seriam úteis para o mundo da “salvação”. Artur trazia de volta, em novo formato, o mito
de Noé, mas ao contrário da narrativa bíblica, não haveria inundações, apenas
um “fim” e objetos e pessoas a serem salvos. Sentia-se um ser grandioso, não
era apenas um profeta ou um líder, era mais que isso; numa entrevista feita
para um documentário, o jornalista o teria perguntado se ele teria visto, em
alguma ocasião, Jesus Cristo, Artur foi objetivo: “eu não, mas o senhor está
olhando para ele.”
Diariamente produzia seu mundo artístico no que resultou em
várias obras de artes que, inclusive, fizeram parte de exposições na Escandinávia
e na Alemanha. Mantos, instalações, maquetes, painéis compreendia parte do seu
acervo. Para Artur, no entanto, nada daquilo era arte no sentido simbólico da
palavra, era, enfatizava, realidade, um ofício salvador, missionário, estava conservando
e colhendo arduamente todas as coisas úteis do velho mundo. Com o passar dos anos seu comportamento
violento foi cedendo e dando lugar as diversas construções artísticas. Mas teria
uma coisa haver com a outra? A arte
teria dado lugar a agressividade? A arte teria dissolvido a violência?
Conta-se que
certa vez um militar alemão perguntou ao pintor Pablo Picasso ao se deparar com
o quadro denominado Guernica (que retrata uma passagem da guerra civil
espanhola – um bombardeio alemão sobre a cidade que dá nome ao quadro): “o
senhor fez isso?”, indagou. “Não,” respondeu o pintor “foi o senhor quem fez”.
A história de
Artur Bispo do Rosário e a resposta de Picasso, de algum modo, leva a reflexões
diversas: de que a arte tende a arrefecer
ou arremessar os impulsos mais destrutivos e agressivos, de que a arte denúncia
o humano e o desumano, de que a arte nos consola num momento de dor nos
explicitando, paradoxalmente, o tema doloroso, de que a arte nos elevaria ao sagrado ou nos desceria ao
profano. Enfim, a arte vem para se queixar e seres humanos são queixosos, são insatisfeitos.
A violência vem igualmente, nos seus atos, se queixar dessas insatisfações. Os artistas se queixam com arte. Que fez Artur
Bispo, então? Schiller responderia: “É
preciso recorrer à arte quando a natureza é avara”.
Originariamente publicado em 05/08/2012
Originariamente publicado em 05/08/2012
Marcos Creder
A arte tem muitos poderes... Um deles, certamente, é traduzir sentimentos ou vivências de seu autor. Talvez, através de tal tradução, venha a suposta ideia de ser compreendido diante da expressão (materializada) de seus pensamentos, convicções, sentimentos e etc., o que possivelmente o faça menos agressivo. Posto que, sua “fala” está sendo levada para o “outro” e, de certa forma, este se fará “ouvido”, o que o levaria ao princípio: ser visto como ser humano, capaz de uma razão, que os que dizem tê-la, desconhecem. Texto e reflexões brilhantes. Beijos!!!
ResponderExcluirHá um documentário chamado O poder da arte pela BBC. No episódio sobre Pablo Picasso, há uma dramatização desse diálogo. “o senhor fez isso?”, indagou. “Não,” respondeu o pintor “foi o senhor quem fez”.
ResponderExcluirhttp://www.youtube.com/watch?v=sh70SiwjNNw