PSICOLOGIA DOS DITOS POPULARES
“A VOZ DO POVO É A VOZ DE DEUS”, esta é uma
das mais conhecidas expressões populares e que vem do latim vox populi, vox
Dei. Presume-se que sua origem vem lá de trás, desde a Antiguidade Clássica
grega. Acreditava-se que o deus Hermes falava diretamente com o cidadão que ia
ao templo de sua adoração através de um oráculo. Logo após consultar o oráculo
o cidadão tampava os ouvidos com as mãos e voltava às ruas. As primeiras
palavras proferidas aleatoriamente por algum passante seriam, portanto, a
resposta divina. Em outros termos: perguntava-se a um deus, mas quem respondia
era o povo.
Pois
é, o povo tem lá suas verdades divinas e são sobre essas verdades e sabedorias
que vamos entender um pouco do ser humano e sua psicologia. Longe do douto
saber da academia e suas teorias, o conhecimento popular, adquirido
historicamente muitas vezes de maneira empírica, embute nos dito e ditados um
saber que, embora não erudito, traz uma enorme e valiosa instrução e cultura.
Assim, dediquemos hoje o espaço a explorar e melhor compreender os
significados, os sentidos e as origens dos adágios populares, ou seja, os
ensinamentos e verdades que vêm da plebe.
“QUEM
CONTA UM CONTO ACRESCENTA UM PONTO”. Eis um provérbio que claramente
destaca a inconfiabilidade plena do testemunhar e do relato humano sobre o
mesmo. Cada pessoa, ao relatar uma história ou um mesmo acontecimento tende a
acrescentar algo de sua autoria. E isto não é feito necessariamente de maneira
volitiva. Muitas vezes até inconscientemente e/ou projetivamente. O grande
cineasta japonês Akira Kurusawa em seu filme Rashomon descreve a
impossibilidade de se obter a verdade sobre um fato quando há pontos de vista
diferentes. Quatro pessoas testemunham um crime e seus depoimentos geram quatro
histórias distintas. O filme gerou a expressão “efeito Rashomon”, conhecida no
campo da Psicologia e das Ciências Sociais e que significa ser possível haver
versões diferentes e contraditórias sobre um mesmo objeto de estudo. A verdade
é sempre subjetivamente distorcida. A memória humana, por exemplo, é
continuamente traiçoeira e enganosa. Em nossa mente ou cérebro os
acontecimentos não ficam registrados em gavetas ou fichários, mas sim se
espalham dentro de nós. Nossos registros mnêmicos não são fotografias
fidedignas, mas frutos de nossas vivências, emoções, fantasias, expectativas e
até mesmo de nossa bagagem e nível cultural. Nossa memória é uma reconstrução
influenciada pela subjetividade do mundo interno. Vai confiar totalmente em
suas lembranças! Freud que o diga.
“GATO
ESCALDADO TEM MEDO DE ÁGUA FRIA”. Utiliza-se este ditado para expressar
a ideia de que quando um indivíduo fez algo que lhe gerou sofrimento jamais
voltará a repetir tal feito. O anglo-saxônico tem sua correspondência com “once burned, twice shy”, isto é, uma vez
queimado, duas vezes tímido. Evidente que se fala dos medos humanos e como eles
são condicionantes. Muitas vezes algumas pessoas, por recearem reviver feridas
que a vida lhe provocou, fecham-se para o mundo e para as pessoas no intuito de
se protegerem. Acontece que muitas dessas muitas vezes são devidas a
sofrimentos tão remotos que sequer o indivíduo sabe ou se dá conta. É o que
ocorre quando se desenvolve e se forma uma personalidade fundada em um Falso
Self. Tal conceito winnicottiano nos remete a construção da subjetividade por
meio da relação com o ambiente (objeto) cuidador. Logo no início da vida é o
objeto que atende toda e qualquer necessidade de um bebê, porém nem sempre o
ambiente é assim tão empaticamente responsivo. Quando esta não responsividade
extrapola os limites de um rudimentar ego em formação (suportabilidade) o bebê vai
se encouraçando por detrás de um Falso Self. O Falso Self, assim, representa
uma espécie de barreira frente ao ambiente não responsivo e por isso sentido
como hostil. Algo parecido expõe Erikson na crise adaptativa inicial da vida
que ele denominou de Confiança Básica x Desconfiança Básica.
“A
PRESSA É INIMIGA DA PERFEIÇÃO”. Eis
um ditado bastante pertinente aos tempos atuais onde tudo parece tão urgente e
a velocidade tomou contornos de um novo paradigma de vida. Tempinho este
provocador de ansiedades. Um sujeito ansioso geralmente quer tudo pra já e
esperar e deixar para momentos oportunos é um tormento quase atroz. Uma pessoa
ansiosa frequentemente é alguém um tanto vulnerável a pressões (internas e
externas) e no aumento da pressão e no elevar do stress subsequente diminui a
capacidade reflexiva do mesmo. Lembro-me aqui da famosa historinha infantil
sobre os três porquinhos e o lobo mau. Lembram? Dois decidiram construir suas
casinhas rapidamente de palha e madeira para ficarem com tempo livre e brincar.
O terceiro, ao invés, levantou sua casinha tijolo por tijolo enquanto os outros
dois ou ficavam brincando ou descansando. Após as casas construídas eis que
chega o lobo e cada porquinho vai pra sua casinha. Como as duas primeiras foram
mal edificadas facilmente o lobo as derrubou com um sopro. Já a terceira não,
afinal ela era de alvenaria e bastante resistente. Pois é, a pressa é inimiga
da perfeição. Há uma expressão latina atribuída ao imperador romano Augusto que
é festina lente, ou seja, apressa-te
devagar. Nem tão lento que mal se mexa nem tão apressado para não atabalhoar.
Erra-se menos. Um tio meu, poeta já falecido, Edson Régis, já escrevia que “não devemos ter a pressa que aniquila o
verso”.
“AGORA
A INÊS ESTÁ MORTA”. Este ditado tem sua origem em Portugal do século
XIV quando Inês de Castro, uma bela jovem da corte de Dom Afonso IV, prometida
em casamento ao herdeiro do trono é desobrigada do enlace conjugal pelo próprio
rei. Depois de casado com outra mulher o antes prometido em casamento e Inês
começam um relacionament adúltero bilateral, visto que Inês também houvera
contraído núpcias com outro homem. Após vários escândalos voltas e viravoltas
Inês é executada e mais adiante o herdeiro assume o finalmente trono de
Portugal, mas “agora Inês está morta”. História a parte, evidente que o dito
popular refere a situações irremediáveis. Tem coisas ou situações na vida que
não retornam jamais. Passou, acabou, findou, morreu. Sabe quando é tarde
demais? É o sujeito sofrendo e se remoendo tipo “ah, se eu tivesse feito isso”,
“ah, se eu tivesse feito aquilo”, mas não adianta, apenas gera desespero e
arrependimento, afinal “Inês tá morta”. É necessário continuar a vida, afinal se o tempo
acabou para certas coisas, não acabou pra outras. Pessoas que não aceitam que a
Inês já morreu são pessoas que vivem de reminiscências, pessoas nostálgicas.
Porém, como diz outro dito, “quem vive de passado é museu”. Devemos nos
orgulhar da vida vivida até então, com suas falhas, erros, sucessos, fracassos,
perdas e acertos. Devemos aceitar que a Inês tá morta, mas que ainda há outras
Inêses vivas por aí.
“FILHO
DE PEIXE PEIXINHO É”. Parece muito com aqueles versos da música de
Belchior “nós somos os mesmos e vivemos
como nossos pais”, afinal a personalidade do ser humano é sempre formada
através do contato do self em formação com o self das outras pessoas
(interpessoalidade), mormente o self dos pais ou seus substitutos. Essas
pessoas significativas com quem a criança entra em contato em sua infância são
inconscientemente internalizadas através de mecanismos como identificação. A
chamada internalização das figuras parentais, inclusive, gera no psicodinamismo
da alma humana uma nova força a antagonizar e até se contrapor a força
instintual dos impulsos. Estamos, pois, a falar daquilo que Freud denominou de
Superego. Esta parte moral do psiquismo (que não existia no início da vida)
representa, entre outras coisas, valores socioculturais gradualmente
introjetados. E são os pais nossos primeiros representantes sociais.
Internalizamos valores, normas e interditos, mas também jeitos, maneiras e
maneirismos.
“PIOR
CEGO É AQUELE QUE NÃO QUER VER”. Reza uma história antiga, que vem da
França do Século XVII, que um certo aldeão submeteu-se ao primeiro transplante
de córnea. Embora a cirurgia em si tenha sido um sucesso, o aldeão solicitou ao
seu médico que o fizesse cego outra vez, pois não estava suportando ver o mundo
e as coisas como elas eram. Preferia o mundo que imaginava através da escuridão
de seus olhos cegos. Dizem que o caso foi terminar nas barras do tribunal e que
o aldeão ganhou a causa, ou seja, a do cego que não queria ver. Verídica ou não
tal história, o que podemos inferir do ditado é que a mente humana tem
mecanismos e recursos psíquicos para não ver o que lhe pode ser visíveis. Entre
esses mecanismos sobressai-se a negação. Não é tão incomum a tendência de negar
pensamentos, percepções, sensações ou sentimentos desagradáveis, afinal somos
lá no fundo do psiquismo regido pelo Princípio do Prazer. Em outras palavras a
negação é um recurso defensivo da mente para não tomar consciência de algo que
lhe perturba. Em casos extremos o mecanismo da negação pode querer negar a
realidade e não somente recalcar aspectos dela. Em casos assim estamos na
órbita do transtorno psicótico. Mas nem só de psicose vive a negação. Pode-se
negar não a realidade em si, mas certas coisas que estão a frente ou a própria
verdade. Há pessoas que preferem viver em suas zoninhas de conforto a ter que
enxergar e lidar com o novo e o desconhecido que está além das cercas do curral
em que suas vidas se transformaram. Realmente não é fácil ver além dos
horizontes em que se está acostumado ver e muito mais difícil ainda é se
expandir para mais de suas cercanias habituais. Difícil sim. Impossível não.
Neste sentido, prefiro encerrar o presente texto com a seguinte colocação do
escritor americano do Século XIX Mark Twain "They did not know it was
impossible, so they did it!".
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