MARINA ANDRADE (PSICOLOGIA FAFIRE)
A cidade fronteiriça
Não sei exatamente o que pretendiam os criadores do blog ao colocar imagens de
Recife como pano de fundo do mesmo, mas a experiência estético-literária de
contato simultâneo com a narrativa de “um amor fronteiriço” e com as imagens da
nossa cidade arrastou meu pensamento, por uma franca associação livre, a pensar
na sintomatologia boderline da nossa Veneza.
Descobri com o texto de Marcos Créder, O drama de uma personalidade, a existência da
discussão “caricata, repetitiva e chata” sobre o caráter contemporâneo do
transtorno boderline. Esclareço, de partida, que não foi esse o sentindo por
onde me encaminhou o livre curso do meu pensamento.
Não foi a ideia de uma sintomatologia comum a muitos habitantes, devido a
fatores sociais partilhados, que me ocorreu, mas a ideia da própria cidade, em
suas manifestações culturais e rotineiras amplas, apresentar um caráter um
tanto quanto... fronteiriço.
A monotonia da vida de Zorg remeteu-me ao marasmo de certas repartições
públicas, à vida pacata e entediante do funcionalismo público sonolento que
perambula em alguns prédios do Recife Antigo, da Rua da Aurora, na falta de
esperança e vivacidade dos trabalhadores da educação pública. Posso pressentir
o tédio de Zorg na rotina do cobrador do Barro-Macaxeira, do caixa do Banco do
Brasil, do gari do Beco da Fome. Não falo do tédio que concerne a cada um na
relação com a sua rotina, mas no tédio que vem de uma falta de sentido
compartilhada por moradores de uma capital de Terceiro Mundo com um quê de
abandono evidente.
Não é de espantar, portanto, que explosões intensas de afetos arrebatem tão
completamente a cidade em determinados momentos. Às vezes são explosões de
alegria, euforia, amores passageiros e relações sexuais inusitadas, temperadas
pela liberação de realizações inconscientes em formas de fantasias, fomentadas
pelo calor provocativo do álcool e das grandes multidões.
No entanto, paira, na cidade, a ameaça constante de uma agressividade
mal-gerida, que pode manifestar-se, desavisadamente, em qualquer esquina... O
roubo é o menor dos males a ser esperado de uma cidade emocionalmente
ambígua e facilmente irritável. Para quem quer comprovar esse lado
irritadiço da mesma cidade que queima de alegria e de paixão em fevereiro, não
é preciso esperar que o acaso o coloque cara a cara com um agressor armado;
basta aventurar-se a deslocar-se de Setúbal à Conde da Boa Vista às 7 horas da
manhã.
Há, ainda, momentos em que os arroubos de alegria, euforia e agressividade
intensas se confundem. Para os que não compartilham das paixões representadas
pelas diferentes misturas entre o vermelho, o preto e o branco, é aconselhável
distanciar-se, pois as crises de uma cidade boderline podem ter consequências
desastrosas. Não é raro que o resultado desses momentos de paixão e devoção tão
intensas seja a destruição de transportes públicos, a hospitalização de
portadores de uma das combinações entre as três cores tabu, envolvidos ou não
nas demonstrações arrebatadoras de afetos.
Talvez, haja em Recife, como em Betty, um pano de fundo de depressão, de
ressentimento com um histórico político de abandono e de cinismo, que
terminaram por constituir uma personalidade instável e agressiva, embora fascinante e sedutora.
De Freud a Flaubert
Foi muito curioso descobrir Marcos Créder como escritor e como crítico
literário. Sempre achei que escritores (e outros artistas) e psicólogos (incluo
no grupo psicanalistas e psiquiatras que olham para além da prescrição de
fármacos) devem ter muito em comum. Primeiramente, a semelhança mais evidente,
ambos têm a linguagem como ferramenta básica de sua atuação, e espera-se (dos
bons) uma habilidade acima da média para lidar com símbolos e com o que
ultrapassa o óbvio no ser humano. Além disso, imagino que há, nas motivações
inconscientes de ambos, para olhar tão de perto a condição humana, um quê de voyeurismo e de
sadismo sublimados. Sobretudo se pensarmos que ambos (mais uma vez, os bons)
têm, por hábito, fincar o olhar principalmente nos aspectos conflitivos,
dolorosos e controversos do ser humano.
No entanto – peço perdão aos trabalhadores da saúde mental – creio que os
escritores dão um passo além: ao contrário do terapeuta, que se depara com
algumas amostras de subjetividades em carne e osso e analisa-as a
partir de dados que observa em seu consultório de paredes concretas, o escritor
parece ter uma antena capaz de captar modelos de subjetividade que flutuam na
atmosfera e que, como coloca Créder, falam, inevitavelmente, de todos nós.
Assim como se espera que, deitados em um divã, possamos encontrar a possibilidade
de projetar no analista nossos desejos e angústias e encará-los como em um
espelho, também diante de um bom livro (ou de um bom filme) podemos estar
certos de encontrar nossas projeções inconscientes tomando formas nas
personagens. E, escritores e terapeutas sabem disso, encontrar nossas projeções
inconscientes não costuma ser muito agradável.
Emma Bovary, assim como Anna Karenina e a representante portuguesa da
histeria, Luísa, desmascaram o lado mórbido das fantasias românticas, trazem à
tona o conteúdo recalcado por anos de romantismo ingênuo. Tal qual a paciente
histérica que se depara com o lado doentio de suas fantasias, imagino que não
tenha sido fácil para os primeiros leitores que se viram nos espelhos
fornecidos por Flaubert, Tolstoi e Eça de Queirós, visto que estavam ainda
embalados pela promessa de amores românticos capazes de dar conta de todos os
vazios e insatisfações. É curioso que os insights possibilitados pelos
realistas sejam contemporâneos às grandes descobertas psicanalíticas sobre a
histeria., assim como a insustentável leveza do ser seja desvelada na mesma
época em que a síndrome do pânico ocupe lugar de destaque nos debates
psiquiátricos.
Além dos histéricos (ou das histéricas?), também os obsessivos foram revelados
pelo realismo. Lembro do Major Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, que cumpria
os horários de maneira tão rígida, que suas passagens na rua eram usadas como
marcador de tempo pelos vizinhos. E o que seria a infatigabilidade de Simão Bacamarte,
se não as marcas de uma personalidade anancástica?
Machado de Assis é, talvez, uma das maiores referências dessa habilidade para olhar de perto a alma humana. Além
dos obsessivos, foi Machado o criador do paranóide mais analisado do Brasil.
Tenho certeza de que Machado, assim como seus leitores, sendo sinceros,
poderiam dizer, sem medo de errar, “Bento Santiago sou eu!”.
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