Todas as relações de amor um dia
chegam ao fim, nem que seja quando a morte as separa. Mas nem sempre uma
história de amor termina pelo morrer de um dos amantes, aliás, o final de uma
relação amorosa em vida transforma uma história de amor em outra história.
O
sociólogo polonês Zygmunt Bauman, provavelmente depois da morte de Norberto
Bobbio o último grande intelectual pós-guerra vivo e em atividade, aponta que
em um mundo impregnado de sinais incertos e ambíguos, cuja rapidez de suas
mudanças nos deixa confusos e um tanto vagueantes e perdidos, as relações
afetivas e íntimas tornam-se cada vez mais flexíveis e frouxas, o que aumenta
ainda mais a sensação de insegurança. Em seu livro “Amor Líquido: sobre a
fragilidade dos laços afetivos” (editora Zahar) Bauman agudamente nos alerta
sobre como uma sociedade e cultura onde a descartabilidade das coisas impera e
se valoriza o instantâneo e o transitório acaba afetando a vida familiar,
sexual e amorosa das pessoas nela viventes.
Sim,
não se iluda caro(a) transeunte leitor(a), vivemos o mercadejar do amor. Em uma
sociedade de consumo – cuja essência e sobrevivência se baseiam na abundância e
no descartável – o que mais há é uma fartura de corpos e uma efemeridade
afetiva. Tá ficando cada vez mais difícil o hoje chegar no dia seguinte. Esquecemos
as lições de Erich Fromm ao referir que “o amor é uma atividade, não um afeto
passivo; é um ato de firmeza, não de fraqueza; é propriamente dar, e não
receber”. Até parece, né? Olhemos ao redor. O que vemos? Muitas pessoas
buscando o amor como satisfação e não como um espaço de realização. Estamos
cada vez mais “analfabetos afetivos”, estamos desaprendendo a amar ou amando de
outra forma: rápida, curta, passageira e intolerante às mínimas frustrações.
O
ser humano trás consigo uma necessidade que lhe é humana: a necessidade de
pertencer a alguém ou alguéns. Chamamos isto de sentimento de pertença. Da
mesma maneira que o corpo precisa de alimento para se manter, desenvolver-se e
se fortalecer, o nosso psiquismo igualmente precisa de amor para se manter,
desenvolver-se e se fortalecer. Todo ser humano, em grau maior ou menor,
necessita sentir-se amado, assim como necessita amar. Dos nossos primeiros
vínculos afetivos fundantes partimos para outros vínculos que, embora não nos
sejam fundantes, são mantenedores desta intrínseca necessidade humana em se
vincular. Espécie de eco emocional com a nossa primeira infância. Daí porque o
ser humano busca tanto se conjugalizar.
A
relação conjugal (formal ou não) é a relação entre pessoas que decidem e se
unem uma à outra na busca de uma vida mutuamente compartilhada. Por isto tais
pessoas são denominadas de cônjuges, do latim “cônjuge” (com = um com outro, juge = ligação). Psicodinamicamente
entende-se que a união amorosa entre duas pessoas não é determinada livremente
pelo acaso, afinal por detrás ou por debaixo de nossas supostas escolhas
conscientes mecanismos inconscientes identificatórios nos influenciam. Há,
pois, em toda e qualquer conjugalidade um entrelaçamento de identificações em
jogo. Não desprezemos ingenuamente a força das heranças que trazemos em nossa
“bagagem psíquica”, advindas desde nossas relações primárias, bem como herdadas
de nossa cultura e história familiar e social.
No
tocante ao estudo da conjugalidade destaca-se dois tipos diferentes de
conjugalidade, a saber: uma estrutura conjugal baseada na simetria e na
gemelaridade, isto é, uma idealização mútua onde os egos não parecem se
diferenciar, com ênfase na completude; e uma outra cuja ênfase recai na
complementaridade e os egos envolvidos são suficientemente discriminados entre
si. Evidente que temos assim, diametralmente opostas, duas conjugalidade em
suportes distintos: a primeira imatura e a segunda matura.
Evidente
também que o cotidiano compartilhado há de desnudar o casal das cobertas
ilusórias da paixão. A realidade muitas vezes é o antagonista do sonho e quando a
idealização diminui sobrepõem-se os defeitos ou qualidades do outro que não
gostamos. É aqui, como se diz no jargão futebolístico, que vai se saber quem é
menino e quem é homem. A conjugalidade estruturada em bases narcisistas não
suporta e se dissolve frente uma realidade divergente da idealizada. Àqueles
que esperavam felicidade sem dor ou renúncia vê escapar da cena conjugal a
felicidade fácil e romântica dos primeiros instantes, como se ela evaporasse
como fumaça entre seus dedos.
Não
é tarefa fácil manter a conjugalidade em tempos de fluidez e imediatismos. A frouxidão
dos laços afetivos revela a vulnerabilidade e precariedade cada vez mais
manifesta como fraturas expostas. A expectativa de vida dos casais hoje é mais
curta do que a de seus membros. A lógica do consumismo extrapolou o campo das
mercadorias e invadiu a esfera psíquica dos afetos. Em um mundo de frenéticos
prazeres superficiais e efêmeros homens e mulheres buscam estabelecer suas
parcerias em um pano de fundo onde qualquer mínimo dessabor é imediatamente
deletado. Entra-se e se sai de relacionamentos como quem cruza portas e
transita em corredores cada vez mais curtos.
Em
interessante artigo publicado em Psicologia Reflexão e Crítica da UFRS (vol.
11, nr. 02, 1998), “Casamento Contemporâneo: o Difícil Convívio da
Individualidade com a Conjugalidade”, Terezinha Féres-Carneiro discute as
tensões existentes no casamento entre duas forças antagônicas: a
individualidade e a conjugalidade. Comenta ela que os ideais hoje vigentes
projetados na figura conjugal enfatizam muito mais a autonomia e a satisfação
individual de cada cônjuge do que a interdependência relacional. Os desejos
individuais se sobrepõem-se aos desejos comuns e projetos conjugais. A antiga
lógica do “para sempre” não mais vigora, muitas vezes imperando no ideal
contemporâneo de casamento que o outro tem de ser uma espécie de reservatório
inesgotável que busca atender todas as necessidades manifestas e latentes. E
nesta elevada expectativa e hiperexigência o casamento sofre conflitos,
pressões e tensões que podem levá-lo à ruptura e dissolução. Mas isto será tema
da continuação deste assunto no próximo post a ser brevemente publicado.
(continua)
Joaquim Cesário de
Mello
LiteralMENTE
O texto de Terezinha Féres-Carneiro marcou minha vida. Esse seu texto está perfeito, perfeito, perfeito!!!Parabéns. Apesar de que... o para sempre é sempre difícil...
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