POÉTICA,
OU SIMPLESMENTE: VIDA
Jorge
Armando
O que está dentro de
um cavalo de papelão? Alma? Mistérios? Lembranças? Vácuo e vazio? Sentimentos?
Histórias? Solidão? Devaneios? É tarefa da poesia e do poeta desvendar. O que
está por detrás das coisas que os olhares mais ingênuos e apressados não vêm o
poeta vê. Aliás, o poeta sente. Sente o sentir dos objetos inanimados, do
passado no presente, o amanhã do ontem, o sossegar da tormenta, o recordar do
já esquecido e o adormecido que nunca dorme. O inexpremível se exprime na
poesia. Um poeta é, pois, um visionário, um profeta e um curandeiro que
ressucita mortos. Ele dialoga com fantasmas e sombras, e é acima de tudo alguém
que se retirou do instante e se isolou do empirico para solitário compartilhar
desertos onde há vida e vida onde há desertos. Decididamente um poeta é um
estranho.
Não existem regras para se fazer
poesia, já dizia Maiakóvsky: "poeta é o homem que cria as regras
poéticas". Então, de que argamassa e matéria é feito um poeta? Como se faz o
seu idear? A alma de um poeta é a alma de um homem comum que deixou de ser
comum ao enchegar o incomum das coisas comuns. Um poeta é feito de infância e
sonhos, como se perambulasse sempre entre o que já foi e o que nunca será.
Simplesmente ele é um contador de afetos e quimeras.
A poesia está onde o poeta está,
afinal em tudo há poesia. Um poema, por exemplo, não se cria, se descobre. Ele
está ali hibernando no óculos deixado sobre a poltrona, na folha caída na rua,
na mulher que passeia com seu cachorro, no atravessar de uma ponte, no tear de
uma aranha, no entardecer de uma dia chuvoso, na lágrima de uma criança triste,
no sorrir sem dentes de um velho, na brisa quente do verão, numa folha de papel
não usada, na luz acessa de uma janela distante, na roupa pendurada no varal,
no silêncio dos elevadores, nos porta-retratos, nas nuvens, nos horizontes...
em qualquer lugar, objeto, pessoa ou situação. A poesia habita por debaixo das
mesas, nos bares, farmácias, esquinas, nas ruas, nas casas fechadas ou abertas,
nas igrejas, nas matas, nas multidões e nos liugares ermos. A poesia está onde
a vida a descobre. Sim, um poeta é um voyeur que pelo brechar das frestas busca
desnudar a poeira das aparências e do corriqueiro.
Fernando Pessoa definiu o poeta como
um fingidor ("finge tão completamente/que chega a sentir que é dor/a dor que
deveras sente"), já Ortega Y Gasset afirmava que o poeta é alguém que diz algo que
ninguém ainda disse, mas que também não é nenhuma novidade. E, talvez, quem
melhor sintetizou o assunto tenha sido Victor Hugo quando clarividente
exclamou: "Um
poeta é um mundo encerrado num homem".
Como psicológo clínico também
encontro poesia e faço poemas entre as quatro paredes de um consultório. Nas
narrativas de nossos clientes e nas entrelinhas de seus discursos acham-se
inumeras metáforas, imagens e versos, afinal o ser humano é por si mesmo uma
enorme e inesgotável alegoria. Em latim verso significa "voltado,
virado". Versar, portanto, é virar ao contrário. Em uma certa intervenção
terapêutica revelei a mim um verso quando expressei à pessoa do meu cliente que
ele precisava "sair para dentro". Ou em outro momento quando
interpretei que "a infância ficou pequena demais para ele". Uma
verdadeira prosa poética se constrói no encontro, no diálogo e no embate entre
o discurso do cliente e o dircurso do terapeuta. E assim surge um terceiro
discurso, uma nova narrativa. Inquestionavelmente um psicoterapeuta é um poeta.
Um dos mais importantes e
significativo poeta alemão, Rainer Maria Rilke, em seu cultuado "Cartas a
um jovem poeta", ensinava com simplicidade a um jovem indeciso poeta que "se a própria
existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga
consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas". Um poeta, diz Rilke,
nunca se deixa enganar pela superfície. E seguindo o que também diz o poeta
inglês William Blake, "se pudéssemos limpar as portas da percepção, tudo se revelaria
ao homem tal qual é: infinito".
Que venham, pois, os próximos poetas.
É deles o meu amanhã. O homem, o ser humano, é permanentemente um espanto que
se surpreende e se encanta com o canto que há em cada canto do seu habitar. É
como se fosse uma espécie de alienígena curioso que olha o corriqueiro e o
redor com olhares de estrangeiro. E com ele o plural transforma-se singular, e
o ordinário vira extraordinário. Celebremos, então, a vida com tudo que nela há
e em tudo que ela é. Suas glórias, triunfos e quedas; com suas alegrias e
tristezas; com suas delícias e dores; com seus aromas e fedores; com seus
silêncios e barulhos; com suas perdas e ganhos, com todos seus entulhos...
E como a vida continua, a poesia
continua. deixo com quem aqui agora está estes versos do poeta português
Fernando Namora, cujo título é Coisas, Pequenas Coisas:
"Fazer
das coisas fracas um poema.
Uma
árvore está quieta,
murcha,
desprezada.
Mas se
o poeta a levanta pelos cabelos
e lhe
sopra os dedos,
ela
volta a empertigar-se, renovada.
E tu,
que não sabias o segredo,
perdes
a vaidade.
Fora de
ti há o mundo
e nele
há tudo
que em
ti não cabe.
Homem,
até o barro tem poesia!
Olha as
coisas com humildade".
As vezes me espanto com as coincidências que ocorrem, se é que de fato existem coincidências. Há pouco tempo li "Cartas a um jovem poeta" e este livro foi um suspiro com efeito de ventania para mim. Sabe aquelas leituras que te transformam, que pintam o mundo com um colorido antes não visto? Pois bem, foi isto o que ocorreu. E antes de ler esse texto estava pensando no livro, na citação que o autor utilizou, e em tantas outras coisas. Chegando ao final só tenho a agradecer por ter reativado alguns sentimentos bons. Não sei, não dá pra pensar que é coincidência. Obrigada Jorge. Valeu! (:
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