Com o
texto abaixo damos seguimento e conclusão aos posts anteriormente publicados
aqui no blog LiteralMente nos dias 01 e 15 de julho do presente ano.
São inegáveis
os avanços proporcionados pela neurociência e pela psicofarmacologia. Todavia
tal progresso trouxe em seu bojo certos retrocessos, tais como a ênfase nas
psicoterapias atuais no tratamento somático. Evidente que a busca de melhoras sintomáticas
se faz necessário, mas não somente. Não somos apenas um resíduo externo de
alterações químicas e fisiológicas do cérebro. Não nos resumimos psiquicamente
a neurônios, sinapses e atividades biológicas. Algo em nós nos habita além do
nosso corpo e que comumente chamamos de mente e outros de alma.
Sim,
a mente não existe sem um cérebro. É como diz Sonenreich, "a mente é um
produto da inserção e da interação do cérebro dentro da cultura".
Biologicamente somos dotados de um instinto de sobrevivência que nos leva a
formar relacionamento com outras pessoas. Como já referido na segunda parte do
presente texto, postada em 15/07/2012, o instinto e seus comportamentos
derivados foi denominado por Bowlby de "sistema de apego". O sistema
de apego é ativado toda vez que alguém se vê frente a algum perigo que lhe
ameace. A ideia de perigo gera sensações de ansiedade e angústia que
frequentemente são amainadas com a proximidade de um outro que gere cuidado e
proteção. O senso de segurança, por sua vez, faz com a pessoa consiga lidar com
o perigou com a ameaça de perigo com mais tranquilidade, dando-lhe assim
chances de ser mais bem-sucedido. E é aqui que entra a importância da
psicoterapia, ou mais precisamente do vínculo psicoterápico.
Técnicas
à parte, psicoterapia é comunicação. O cliente comunica suas necessidades
frente a um terapeuta que não somente recebe e processa as informações, mas
também atente a necessidade humana de se comunicar com um outro. Somos seres
por natureza e por excelência dialogais, ou como diz Bakhtin "sem
material semiótico não se pode falar em psiquismo". Ou ainda como nos
versos iniciais do poema Tecendo a Manhã de João Cabral de Melo Neto: "um
galo sozinho não tece uma manhã/ele precisará sempre de outros galos".
É isto o que temos no encontro psicoterápico: o compartilhamento de mentes
humanas.
Um
dos mais importantes teóricos do cenário psicoterápico, Winnicott, sempre
destacou o papel do ambiente na integração com o indivíduo. Um “ambiente
facilitador” é como o próprio nome diz: facilita o desenvolvimento psíquico que
é potencialmente inato. A prática clínica se faz em um espaço (físico e
intersubjetivo) que deve estar sempre aberto e disponível para o novo, o
criativo e a descoberta mútua.
Já
Kohut, outro autor que nos oferece elementos relevantes e significativos para o
entendimento do que se passa subliminarmente em uma relação psicoterápica,
contribui com a premissa de que a pessoa do terapeuta (enquanto objeto e
função) será internalizada paulatinamente na estrutura do self do
cliente/paciente. Como diz Kohut, não são as intervenções do terapeuta que
curam, mas sim o uso do self deste como objeto por parte do self do cliente.
Uma postura introspectiva, questionadora e empática do terapeuta é, portanto,
um componente fundamental no processo de mudança que uma psicoterapia propicia.
Tal postura (conjugada a função continente que faz menção Bion e o holding como
sugere Winnicott) não somente gera um “lugar” do psicoterapeuta dentro do
setting clínico, mas principalmente uma figura ou representação psíquica de
segurança e proteção para os mergulhos alma adentro, afinal, como escrevem
Vitor Rodrigues e Mariza Hutz, a mudança é uma potência que deseja por um
espaço no psiquismo e aguarda uma oportunidade.
O que
torna uma psicoterapia eficaz ainda é um mistério a ser desvendado, pois nosso
conhecimento acumulado de mais de 100 anos é insuficiente para sabermos com
exatidão. Mas avançamos e estamos avançando, é bem verdade. Estudos e pesquisas
a respeito centram-se em dois aspectos: investigação dos resultados
terapêuticos e investigação dos processos. São vários e diversos os
ingredientes terapêuticos envolvidos que contribuem para a mudança psíquica e
comportamental do indivíduo. Embora qualitativamente seja ampla a questão, indubitavelmente
os mecanismos de ação terapêutica se processo graças e com a presença humana de
um psicoterapeuta.
Evoco
aqui analogamente, dadas às devidas proporções, o fenômeno do efeito placebo. O
placebo é aquele fármaco ou substância inerte (“pílula de açúcar”) que
apresenta efeitos terapêuticos com base na crença do paciente de estar sendo
tratado. É um fenômeno fortemente psíquico com resultados reais que é causado
pela ilusão subjetiva de que tal substância vai ajudar. As crenças e as
esperanças de uma pessoa têm significativos efeitos psicológicos e bioquímicos
sobre o mesmo. É como demonstra o antropólogo Claude Lévi-Strauss ao referir
que a eficácia da magia implica na crença da magia. Para ele o fenômeno da
feitiçaria é calcado em um tripé assim constituído: a crença do feiticeiro na
eficácia de suas técnicas, a crença do doente de que ele é capaz de curá-lo ou
de enfeitiçá-lo e o background social de que aquela relação é uma relação de
feitiçaria.
Não
que uma psicoterapia seja uma relação de feitiçaria, é óbvio, mas que ela se
processo em um campo gravitacional semelhante ao da magia. E isto não está
distante do conhecido conceito lacaniano do “sujeito do suposto saber”, afinal
quando um paciente procura um psicoterapeuta ele trás consigo suas esperanças,
sua confiança no outro e sua crença de que este outro detém um saber que irá
ajudá-lo. Gostem ou não os mais objetivistas, mas direta ou indiretamente o
cliente coloca seu terapeuta em um lugar de figura de autoridade. E assim,
queiramos ou não, um processo psicoterápico se inicia com e a partir do
estabelecimento de uma transferência.
O
próprio Skinner também deu sua contribuição ao entendimento dos efeitos
terapêuticos da relação em si no que ele denomina de “audiência não punitiva”,
isto é, na atitude compreensiva do terapeuta dos comportamentos do cliente sem
julgá-lo e que propicia a exposição mais livre da intimidade por parte do
paciente na expressividade do que quer, do que pensa e do que sente. O
compartilhamento com alguém dos segredos, medos, inseguranças, pensamentos,
dúvidas, conflitos e afetos já é por si próprio terapêutico.
A
utilização do setting como um espaço promovedor de uma relação íntima e de
envolvimento é fundamental. Mesmo que a exposição de certos conteúdos psíquicos
por parte do cliente possa ser dolorosa é papel e função do psicoterapeuta
inibir os movimentos evitativos e de esquiva, através de sua capacidade de
continência e tolerância em meio a um clima de confiança, respeito e
aceitabilidade. Aos poucos o paciente vai melhor compreendendo suas evitações e
respostas de esquiva e escape e com isto igualmente tolerando suas experiências
subjetivas dolorosas e, assim, desenvolvendo outros repertórios que o auxiliam
a crescer psicológica e emocionalmente.
Enfim,
toda e qualquer psicoterapia é sempre um processo complexo de inúmeras
variáveis e que se faz dentro de um cenário e contexto interpessoal. Ambos os
envolvidos – paciente e terapeuta – não ficam e saem ilesos desta relação.
Embora o foco transformativo esteja voltado ao cliente, o psicoterapeuta é
também reciprocamente tocado pelo clima psicoterápico. Como afirma Brandão em “Os
sentimentos na intervenção terapeuta-cliente como recurso para a análise
clínica”, publicado no livro Sobre Comportamento e Cognição, o
exercício diário de um psicoterapeuta é fazer crescer e reciprocamente ele
também cresce.
Espero,
ao término deste artigo aqui dividido em três partes, estar dando minha modesta
contribuição ao campo de estudo da psicoterapia, mormente em tempos cuja
atividade clínica corre o risco de se estar reduzindo a uma quase mera
aplicação de manuais e execução de protocolos. A subjetividade humana é rica e
vasta para ficar empobrecida somente porque estamos ficando preguiçosos em
estudar mais, refletir e aprofundar tanto os conhecimentos já adquiridos como
em investigar os mistérios da alma humana. Sem isto a alma do próprio
psicoterapeuta empobrece e empobrecida de pouca serventia tem ou quando tem
contribui para alívios e melhoras mais imediatas e pouco
ou quase nada para a mudança, mudança psíquica esta que no fritar dos ovos é o
que realmente interessa.
Joaquim Cesário de Mello
Ao chegar ao término do artigo me encontro muito inquieta. Venho pensando e tentando formular ideias sobre psicoterapia a um tempo e com esses textos minha cabeça está borbulhando. Obrigada por isso.
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