Vive-se hoje tempos onde a
tecnologia predomina em praticamente todas as áreas humanas e sociais. Quem
atualmente, urbanamente falando, consegue viver sem internet e celular, por
exemplo. Muitos poucos. Embora a tecnologia seja para a humanidade uma poderosa
ferramenta em seu constante avançar, bem como seja inegável a importância da
mesma para a evolução do ser humano em geral e que nos facilita a vida
sobremaneira, o surgimento cada vez mais rápido de novas tecnologias está
gradual e processualmente levando-nos a cada vez mais sermos dependentes delas.
Com a popularização crescente de smartphones, tablets, net books, games
eletrônicos, iPods, redes sociais, GPS, etc e tal, tem nos levado a uma
sensação subjetiva e real de que estamos em um universos múltiplo e dinâmico em
constante transformação e mudanças. Mal aprendemos uma ferramenta tecnológica e
já surge outra, e outra e outra...
Certa
vez, no distante ano de 1979, disse o historiador e crítico social Cristopher Lasch que pós-modernidade gera
pessoas pós-modernas. Sim a cultura do narcisismo venceu e agora impera.
Alguém, até, já nos denominou de “geração
fast-food”. Era, portanto, inevitável que no corre-corre da vida bulímica
contemporânea e com o impregnar tecnológico em nossos cotidianos o mesmo não
respingasse no campo das chamadas psicoterapias. Não falo aqui da tecnologia
propriamente dita, mas da maneira de pensar tecnocrática. Pós-modernidade gera
pessoas pós-modernas.
As
psicoterapias estão correndo o risco de se transformarem em abordagens
psicoterápicas puramente técnicas, isto é, com predominância quase exclusiva da
técnica com secundarização e quase olvidar dos aspectos psíquicos e subjetivos
inerentes nos quais se baseiam o encontro terapeuta-cliente. Na balança da
técnica e da arte, na qual se realiza qualquer psicoterapia, pende-se
perigosamente para a técnica em detrimento da criatividade e da arte. Digo
perigosamente pelo receio (ou seria temor?) de que os psicoterapeutas deste já
não tão iniciante assim século XXI se transformem em psicotecnocratas, em um
verdadeiro culto, muitas vezes pouco refletido, à hegemonia da técnica com
consequente “esquecimento” do humano propriamente dito. Humano aqui -
entenda-se - algo além e muito além do que somente síndromes e sintomas.
A
excessiva padronização de técnicas descritas em manuais, a exagerada
preocupação com monitorização de comportamentos e ideações, o reducionismo
pretensiosamente científico da maneira de abordar, o modelamento engessante da
sistematização operante, o mapeamento enfático através de questionários, a
preeminência do que é observável empiricamente, a sobreestimação do racional
sobre o emocional, entre outras coisas, está empobrecendo a riqueza do encontro
psicoterápico na exaltação ao sintomático. Tudo isso tem sua relevância e sua
importância, mas tudo isso não é toda psicoterapia. Existe, evidente, o sintoma
apresentado, a pessoa que se apresenta e a própria relação que se presentifica
entre o terapeuta e o cliente/paciente. Todas as citadas existências existem em
um único momento psicoterápico, assim como existe uma significativa diferença
entre o melhorar e o mudar.
Técnicas
e estratégias de abordagens à parte, o que sustenta uma relação psicoterápica
são os aspectos psicológicos e inespecíficos de qualquer encontro humano e
intersubjetivo. O psicólogo Carl Rogers muito contribuiu para o estudo da
psicoterapia, principalmente em seus elementos eminentemente subjetivos. Em sua
visão claramente humanista do processo psicoterápico Rogers enfatizou o
trabalho terapêutico como um facilitador do potencial de crescimento psíquico
que existe no cliente, aliás, em todo ser humano. A aceitação da pessoa como
ela é, a empatia e a congruência estão para Rogeres como precondições básicas
que facultam, proporcionam e viabilizam a própria psicoterapia tanto como
encontro humano como tratamento. Intuição, sensibilidade e compreensão
emocional, feeling, timing, inventividade,
comunicação e receptividade afetiva, e outros atributos pessoais que deve ter
um psicoterapeuta são por demais necessários a qualquer bom funcionamento
psicoterápico. Muito mais do que um psicoterapeuta faz é quem o psicoterapeuta
é, pois este é, sem sombra de dúvidas, o principal instrumento da psicoterapia:
o self do psicoterapeuta.
Dentro
de um rigor pretensiosamente científico estabelece-se o paradigma de que a
eficácia de uma psicoterapia é a técnica empregada e a teoria na qual ela se
baseia, e assim se esquece de que os efeitos terapêuticos de uma psicoterapia
qualquer têm mais a ver com a relação que se estabelece. É o próprio
relacionamento em si que será o grande propulsor e agente de mudança e isto,
por sua vez, só será possível quando o psicoterapeuta espontaneamente se
permita criar uma psicoterapia única e exclusiva, ou seja, uma psicoterapia que
só existe para aquele cliente, que se construiu como relação a partir das
demandas, da personalidade e das idiossincrasias da pessoa chamada cliente.
Evidente
que não estou a mencionar coisas novas. Não, pelo contrário. Talvez esteja é
evocando o que estamos esquecendo quando sem nos aperceber estamos quase na
iminência de nos tornarmos profissionais de manuais, muitos deles verdadeiras
“receitas de bolo”. Na ânsia cientificista, que às vezes camufla uma ideologia
a serviço de interesses econômicos (entre eles a indústria farmacêutica), cada
vez mais se desenvolvem técnicas lastreadas e estruturadas em protocolos de
atendimento voltados a tipologias e a problemas específicos com grave comprometimento
à singularidade de cada pessoa ou caso. E não estou sozinho, é claro. Em minhas
inquietações, questionamentos, reflexões e andanças tenho-me deparado com
outros que igualmente compartilham da mesma preocupação. Entre eles gostaria de
citar o excelente trabalho publicado pelo pessoal de pós-graduação em
Psicologia da PUC (RS) Marta Ludwig, Marlene Strey (minha ex-orientadora de
mestrado, saudades) e Margareth Oliveira, “Tratamentos Manualizados: Psicólogos
Matemáticos?”. Dele reproduzo o seguinte trecho: “As técnicas, por si só, são vazias se não
houver esta base forte e bem trabalhada. Talvez seja mais benéfico para o
paciente ter uma boa relação terapêutica, mesmo que não sejam trabalhadas
técnicas específicas para o seu problema, do que ser submetido à técnica mais
pesquisada e empiricamente eficaz se não foi estabelecido um vínculo afetivo,
de empatia e de confiança”. Sim, a relação humana é fundamental.
A relação é fundamental, principalmente
porque é ela que aciona os aspectos e fatores psicológicos e potencialmente
salutogênicos que há em qualquer ser humano em suas relações com outros seres
humanos. E é sobre isto que iremos
versar na próxima continuação deste texto, em breve.
(continua)
Joaquim Cesário de Mello
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