Se
estivéssemos agora em uma conversa informal, tipo mesa de bar, por exemplo,
diria: “pense num filme pesado!”. Estou
a falar de Réquiem Para Um sonho
(2000), do cineasta Darren Aronofsky, adaptado do livro homônimo escrito por
Hubert Selby Jr. Nele temos a personagem Sarah Goldfarb (interpretada por Ellen
Burstyn) que é uma viúva sexagenária que vive sozinha em seu apartamento no
Brooklyn, Nova York. Em sua solidão e vida esvaziada ela encontra sentido para
sua apagada existência assistindo televisão. Eis que chega um dia em que recebe
um telefonema convidando-a a participar de um programa televisivo. Glória para
Sarah. Ela passa então a esperar esse momento sublime (seus quinze minutos de
fama?) e obceca com o pensamento de voltar a vestir um antigo vestido vermelho
para a ocasião.
Sarah, que não é mais jovem quando
da época em que usou o referido vestido pela primeira vez, passa
tresloucadamente a fazer um regime com base em anfetaminas e barbitúricos. Com
tanta química diuturnamente ingerida, Sarah altera gradualmente seu
comportamento. Sua vida agora é emagrecer e aguardar ansiosamente a nova
ligação para marcar o dia de sua apoteótica apresentação na televisão. Ela
emagrece, mas o convite não surge. Ela emagrece ainda mais e o convite não vem.
Chega-se ao ponto em que alucina estar na televisão. Seu fim, previsivelmente
trágico, a leva à catatonia e o internamento em um manicômio.
A miséria vivida pela personagem de
Sarah é igualmente acompanhada pelo seu filho Harry e sua namorada Marion,
todos viciados em heroína. Além do casal há um amigo também drogadicto. Todos,
assim como Sarah, têm um desfecho terrível. O amigo é preso e Harry de tanto se
picar tem o braço amputado. Marion se prostitui e participa de orgias
degradantes em busca de cocaína. O final do filme é onírico, não no sentido de
um sonho dulcorizado, mas sim nos delírios de Sarah que se vê no programa de
televisão junto com seu filho, ambos sob os aplausos intensos e calorentos da
plateia imaginária.
Pense num filme pesado. Pois é, a
vida também pode ser pesada, principalmente para aqueles que sofrem de
anorexia, como Sarah. Definindo resumidamente anorexia nervosa como um
transtorno alimentar que envolve uma limitação exagerada de alimentação a ser
consumida. Na perda de peso intensa através de dietas auto impostas o anoréxico
busca desenfreadamente uma magreza quase esquelética e sofre distorções em
relação a sua imagem corporal. Há na anorexia nervosa um “medo doentio em engordar”. Tal medo, conjugado o emagrecimento
incessante e autoimagem distorcida, são sinais claros da anorexia.
Embora a anorexia seja claramente um
transtorno psiquiátrico alimentar suas causas ainda não são de todo
desvendadas. Acredita-se que possam existir causas genéticas, assim como
características psicológicas provocadoras de ansiedade e obsessão. Some-se a
isso um ambiente social em que se cultua o corpo magro e temos um “prato cheio”
para o desenvolvimento da morbidade em questão. Seja como for, a anorexia é um
distúrbio complexo e provavelmente de múltiplas raízes. Em minha prática
psicoterápica clínica em todos os pacientes/clientes que apresentavam sintomas
de anorexia existia sempre subjacentemente uma baixa autoestima perceptível.
Trata-se de pacientes inicialmente refratários ao processo psicoterápico, onde
a motivação em progredir é mínima ou quase zero. Em suas atitudes resistentes e
desafiadoras o paciente anoréxico muitas vezes é um auto sabotador. Embora
saibam de sua necessidade de se tratar o medo em relação à mudança corporal
almejada é maior. Por detrás do discurso escondem-se sentimentos de
onipotência, bem como certo desejo em não crescer, afinal o corpo de um
anoréxico (na sua grande maioria mulheres em fase adolescente) de tão magro e
delgado parece ser um corpo de uma criança franzina. Uma moça anoréxica tem um
visual estilo “tábua rasa”, ou seja, desaparecem as curvas da mulher e
predominam as silhuetas retas da menina.
Eficácia e resultados satisfatórios
parecem advir quando trabalhamos mais focalmente no desenvolvimento por parte
do paciente/cliente em lidar, manejar e responder às pressões da vida e da
faixa etária. Claro e evidente que somente psicoterapia talvez seja
insuficiente, pois na grande maioria das vezes se faz imperante um tratamento
de caráter multidisciplinar, envolvendo tanto o psicoterapeuta, quando
nutricionista, psiquiatra, clínico geral e até mesmo hospitalização, se
necessário.
Do ponto de vista psicoterápico sou
de opinião que deve se dar vez ao discurso idealizado do anoréxico, ou seja,
não bater logo de frente com seu consciente anseio de emagrecer, pois, além de
uma ideação obsessiva, tal desejo chega às raias de uma espécie de quase
delírio. Possibilitar ao paciente, geralmente adolescente, expressar sua
linguagem impregnada de temas como corpo, comida e peso, é a mais principal via
de comunicação inicial entre terapeuta e cliente. O anoréxico, assim, tem a
oportunidade – às vezes única – de se sentir escutado. Embora o objetivo mais
visível da psicoterapia seja estabelecer um melhor controle sobre o hábito
alimentar, conjugadamente também se foca a autoestima baixa, buscando-se a
livre expressão de sentimentos e emoções, bem como gradualmente explorando
conflitos psíquicos subjacentes. Quem sabe assim ele ou ela não possa dar novas
significações a si mesmo, seu corpo, sua vida e ao mundo que o (a) circunda.
Lembremos que um anoréxico, adolescente ou não, necessita desenvolver mais sua
personalidade, crescer psiquicamente, e consolidar sua identidade ainda frágil
e seu processo de autonomia e individuação.
Será a anorexia, assim como a
bulimia, um transtorno de natureza oral? Haverá um Ideal de Ego exigente a
oprimir o ego debilitado? A obsessão é apenas a camada externa de uma
melancolia que não ousa dizer seu nome? Estamos frente a uma patologia
narcisista? O fechar a boca representa igualmente uma mudez das pulsões? Que
fantasmas assombram aquele corpo emagrecido e franzino purificado de pecados? O
discurso manifestadamente orgulhoso do anoréxico esconde um bulímico
envergonhado? Onde está a libido e seus objetos? Não sei, de antemão,
responder. Que tal deixar a pessoa chegar primeiro e poder falar e expressar
toda sua humanidade em latência. Quem sabe assim possamos conhecer melhor
alguém que muito mal se conhece a si mesmo. A anorexia é o nome de uma doença e
a pessoa que se encontra por detrás do doente é muito mais do que apenas um
nome.
Joaquim Cesário de Mello
Esse filme é uma droga.
ResponderExcluirÊxtase de imagem e delírio.
Com fortes efeitos colaterais reflexivos e sequelas para o resto da vida.
Com seu tema musical altamente viciante composto por Clint Mansell.
Confesso que é uma das coisas que mais me marcou no filme e a musica me acompanha até hoje. Eu adicionaria um “pra caralho” no final... Pq Requiem For a Dream é um filme forte pra caralho, mesmo.
E sobre os questionamentos do final, também concordo. “Que tal deixar a pessoa chegar primeiro[...]”. Como “procurar” algo em alguém, sem nem deixar esse alguém se mostrar.
ps. Enquanto escrevo o comentario, escuto Clint Mansell!
Caio, tá na hora de vc postar aqui algum artigo, principalmente sob a inspiração de Clint Mansell. Vc está não somente convidado, mas igualmente convocado. Manda, quado puder, suas ideias para comportilharmos.
ResponderExcluirUm abraçoJoaquim Cesário