sexta-feira, 31 de maio de 2013

ESPAÇO DO COLABORADOR

No segundo livro de As crônicas de gelo e fogo - A Fúria dos Reis - acontece um valioso diálogo entre Varys, um eunuco e Tyrion Lannister, um anão. Dois personagens maravilhosos e instigantes que apesar dos estigmas ultrapassam o discurso de desprezo e a cada capítulo crescem na trama. 

Varys se dirigindo a Tyrion lhe diz: - "Posso deixá-lo com um pequeno enigma, Lorde Tyrion? - Não esperou resposta.- Numa sala estão sentados três grandes homens, um rei, um sacerdote e um homem rico com o seu ouro. Entre eles está um mercenário, um homem pequeno, de nascimento comum e sem grande inteligência. Cada um pede a ele para matar os outros dois. 'Faça isso', diz o rei, 'pois eu sou o governante por direito'. 'Faça isso', diz o sacerdote, 'pois estou ordenado em nome dos deuses.' 'Faça isso", diz o rico, 'e todo este ouro será seu.' Agora, diga-me: Quem sobrevive e quem morre?"

Depois da indagação o eunuco vai embora. Tyrion fala a uma prostituta que questiona se seria o rico sobrevivente: "Talvez. Ou talvez não. Parece que dependeria do mercenário."
Algum tempo depois Varys pergunta a Tyrion se ele havia pensado e solucionado o problema. E então se  desenvolve a seguinte conversa

- "Passou pela minha cabeça uma ou duas vezes - Tyrion admitiu. - O rei, o sacerdote, o rico ... Quem sobrevive e quem morre? A quem obedecerá o mercenário? É um enigma sem resposta, ou melhor, com muitas respostas. Tudo depende do homem que tem a espada.
- E, no entanto, ele não é ninguém - Varys concluiu. - Não tem uma coroa, nem ouro, nem o favor dos deuses, mas apenas um pedaço de aço afiado.
- Esse pedaço de aço é o poder da vida e da morte.
- Precisamente... E, no entanto, se são realmente os homens de armas que nos governam por que fingimos que nossos reis têm poder? Por que que um homem forte com uma espada obedeceria um rei criança como Joffrey, ou a um idiota encharcado em vinho como o pai?"

Após uma pequena, mas não simples reflexão, Varys responde:
- "O poder reside onde os homens acreditam que reside. Nem mais, nem menos.
- Então o poder é um truque de mímica?
- Uma sombra na parede - Varys murmurou. Mas as sombras podem matar. E muitas vezes, um homem muito pequeno pode lançar uma sombra muito grande."

E assim começo a introdução para tratar do conceito Topdog-Underdog na gestalt-terapia. É usado na literatura duas traduções, uma é Dominador (topdog)- Dominado (underdog) e a outra Manipulador ativo e manipulador passivo. Utilizarei a segunda por acreditar que contempla melhor o conceito.

Pode-se resumi-los como um embate entre opostos que ocasiona numa encenação que tende a inércia. O manipulador ativo faz o papel do poderoso. De acordo com Perls é exigente, punitivo, autoritário e primitivo. Sempre se julga com a razão, nem sempre a tem, mas não importa, julga-se certo toda vez. Ele é um tirano, e funciona com "você deve" e "você não deve". O manipulador passivo atua sendo defensivo, procura seduzir, despertar piedade, vive pedindo desculpas. Desenvolve uma grande habilidade em fugir das ordens do manipulador ativo tendo a intenção de concordar apenas parcialmente. Ele é astuto e, geralmente, leva a melhor no conflito.

O que de fato acontece é uma brincadeira, como fala Perls, entre dois palhaços que representam uma sina e papéis inúteis. O show gira em torno do poder, do controle. Ambos disputam por um espaço maior no palco. Cada um com suas artimanhas tentam aprisionar o outro e silenciá-lo. 

Os espectadores podem acreditar que o manipulador ativo possui o poder, e o passivo é um pobre subjugado. Porém, observando com atenção vê-se o manipulador passivo brincando de marionetes com o seu suposto "dominador". Escondido atrás de seus dramas provoca a piedade e compaixão dos outros e deles retira sua força, aliás, essas são suas maiores armas. Contudo, não se pode negar que as investidas do manipulador ativo têm seus efeitos. Ambos estão numa batalha que não haverá vencedores. O poder é uma sombra que passeia entre os dois palhaços, assombrando-os. 

Quanto mais forte é o Manipulador ativo, mais poderoso fica o seu rival. Rivais que dançam uma bela valsa. Em completa harmonia. Tão complementares, que tal cenário não precisa ser composto por dois atores. Tudo isso pode se passar dentro de um mesmo corpo.

Poder, a busca de muitos, se não todos, os homens. Ilusão que os devora e na verdade não passa de uma capacidade natural de todo Ser humano. O mundo vive este espetáculo e não se dá conta que no final não há aplausos.
Andreza Crispim

sábado, 25 de maio de 2013

DIÁRIO DE AULA: EDIÇÃO ESPECIAL

    Abaixo momentos cruciais do diálogo entre mãe e filha no filme Sonata de Outono, do Ingmar Bergman, passado recentemente em sala de aula, em vídeo dividido em parte I e parte II. É bom revê-lo, e revê-lo com apreciação e calma:


sexta-feira, 24 de maio de 2013

VALE A PENA VER DE NOVO

                                               

O AZUL POR DETRÁS DA NOITE

O azul se foi engolido pela enorme boca negra da noite. A cidade, como que em festa para esconder o medo, clareia-se outra vez derramando suas luzes pelas calçadas e as pessoas nelas. O dia agora reinventado no sumiço do sol é tão elétrico, químico e falso quanto tudo o que habita e reside no ventre da noite. A artificialidade brilhosa e fluorescente e a luminescência piscante das ruas confundem-se com a multidão de vampiros que vagueiam por entre bares e cantos sugando ilusões. Iluminada, a noite desaba inteira e fogosa sobre a cabeça da cidade.

O barulho da sirene da ambulância passageira interrompe o prolongado cochilo, acordando-a. Às escuras a casa parece inexistir e com ela suas recordações, embora permaneça lá e meticulosamente arrumada como antes estivera. Temendo enxergar-se na impossibilidade de ver, tateia o relevo da parede e suas imperfeições em busca de interruptores. Mais rápidos do que um pensamento retornam a ela os objetos, os móveis e todas as coisas com as quais reafirma sua memória de décadas. Tudo lembra épocas e pessoas ausentes ou que também se foram como se toda a casa fosse feita somente de azul.

Logo se percebe sozinha em meio ao silêncio de suas histórias - não há mais a ruidosa algazarra dos filhos a encher os espaços de coloridos sons azulados. Ele ainda não está: o vazio da poltrona ao lado em frente ao aparelho de TV denuncia a costumeira demora, porém tem ela ali, como eternamente tivera, a lerda certeza do seu impreciso retorno. Conhece-o bem após tantos anos que é sabedora das repetidas impontualidades do seu homem de meio-século. Vê-lo chegar sobrevivente das ruas fora tarefa de sua vida inteira, e com resignada aceitação destínica recolhia, como ainda recolhe, as paisagens em suas roupas ao cesto na lavanderia. Jamais houvera ele de conhecer notícias de suas inquietas insônias. Chegasse cansado, bêbado ou triste sempre a encontraria em dissimulados sonos de onde, através dos cerrados olhos, mirava a madrugada que dormia entre os dois.

Para passar o tempo, o tempo da espera e da colheita, rezava aos santos inúmeras preces aprendidas de sua mãe, assim como sua mãe aprendera de sua avó e esta da avó desta e ela de seus outros ancestrais (o terço e a novena eram-lhe assim ecos de vozes quase medievais). Deus lhe vinha de tão distante, de remotas eras herdadas muito antes das caladas bocas já mortas nos retratos espalhados por toda a casa. Lá, nos dias primordiais em que se encontram enterradas sua infância e mocidade, rosnam e ladram os nomes que a fizeram de barros e água, como as frágeis argilas e gessos dos moldes dos seus santos. Incontáveis ave-marias e padre-nossos a separam do seu início e do seu término.

Uma fina garoa molha e esfria a noite. Pelo vidro umedecido da janela espia preocupada o caminho murado e arborizado da volta. Ele, como de comum e habitual, saíra sem guarda-chuva ou capa. Prepara-lhe o pijama sobre a cama e debaixo dela os chinelos de couro com que o presenteara em suas bodas de ouro. Separa as toalhas inusadas e perfumadas de amaciantes de roupa e aquece a sopa para que ele ao chegar a tome ainda bem quentinha. Arruma sobre a mesa pratos, talheres e copos, dispondo em sequência os compridos: primeiro os brancos e em seguida os rosas, os marrons, depois os amarelos e por último os azuis, como quem prepara carinhosamente arco-íris. Não precisaria falar para ele o tamanho da imensidão de seus afetos, apenas o banharia de álcool para que não apanhasse gripe, servindo-lhe um chá de alho e limão para, após, deitar-se à cama fingindo-se dormir.

Quando ele chegar, seja de onde vier, a encontrará com a mesma inesquecida ternura como se seu homem viesse de cinquenta anos atrás, trazendo-lhe de volta, em seus grandes olhos esbugalhados, o azul de um imenso e ilimitado azul, tão azul que espantaria de vez e para longe toda aquela prolongada noite.

(ORIGINARIAMENTE PUBLICADO EM 17/09/2012)
 

Joaquim Cesário de Mello



sexta-feira, 17 de maio de 2013

VALE A PENA VER DE NOVO


TODO PSICOTERAPEUTA É MULHER

   

      Somos seres biologicamente divididos em dois sexos: macho e fêmea. Já  socialmente somos construídos a partir de dois gêneros distintos: feminino e masculino. Tal construção, por sua vez, se realiza mediante a dinâmica das relações sociais, afinal os seres humanos, ao menos os humanizados, se constroem em relações com outros seres humanos. A pessoa que habita cada indivíduo é, portanto, em parte, uma encarnação das relações sociais.
O conceito de gênero é prestável para aclarar muitos dos comportamentos dos homens e das mulheres em uma dada sociedade. Sim, há diferenças entre gênero e sexo. Todavia deixemos a diferença sexual no momento de lado, visto que são diferenças que estão em nossos corpos, seja em suas externalidades, seja em suas interioridades. Enfoquemos, pois, a alma, ou melhor, o psiquismo humano que constitui a personalidade e a maneira de ser e de se estar no mundo e na vida.
       
     Toda sociedade e/ou cultura cria ideias de como é ser homem e ser mulher. A isto damos o nome de representações de gênero. Homem e mulher, assim, se apresentam biológica e socialmente como opostos e complementares entre si. A construção da masculinidade e da feminilidade são processos correlatos à construção de própria identidade pessoal. Mas igualmente não quero, no pequeno espaço deste texto, ficar aqui a abordar socialmente a questão. Busco questionar em termos psicológicos, embora saibamos que o que chamamos de psicológico é inseparável do biológico e do social.
Psicologicamente falando somos todos duais. A separação do feminino e do masculino não encontra guarida na esfera psíquica. Somos ambos, isto é, masculinos e femininos. E neste sentido Jung foi bastante profícuo e perspicaz. Jung nos fala do anima e do animus, que são opostos inconscientes à persona de um sujeito. Considerando a persona como a forma como nos apresentamos, bem como o papel que assumimos e que por meio dela nos relacionamos com os outros, a persona é um veículo de comunicação entre o nosso interior psíquico com o nosso exterior. Feito uma roupa que se usa, a persona revela nosso estilo pessoal e interpessoal.
A alma ou psiquismo humano tem assim sua dupla face. A imagem como ela se vê enquanto Eu e se identifica, e uma outra que a complementa e que se encontra como um Não-EU, isto é, por detrás do próprio Eu. A consciência masculina tem, pois, sua contrapartida em um anima, enquanto a consciência feminina, por sua vez, tem sua complementação em um animus.
Masculino e feminino, dois aspectos de um todo. Sem fusão, nem confusão. Convencionamos caracterizar como masculino qualidades psíquicas e habilidades tais como: racionalismo e pensamento instrumental, objetividade, maior aptidão motora, orientação espacial, logicidade; enquanto o feminino é caracterizado como sensibilidade, intuição, comunicação emocional, fluência verbal, entre outros.
Venhamos e convenhamos, não se necessita ser homem ou mulher para ter tais qualidades e habilidades acima citadas. Basta ser humano. Qualquer ser humano é ou pode ser sensível, empático, racional, lógico, intuitivo, observador, analítico, paciente, objetivo e subjetivo. Muitas vezes é só se permitir. Outras, desenvolver.
      Qual psicoterapeuta, para o bom exercício de sua função, não tem uma percepção mais aguçada das coisas, isto é, sensível? Como auscultar a alma humana sem o se usar a empatia e a dita “inteligência emocional”? Como lidar com sentimentos e aflições alheias sem o tirocínio das próprias emoções em sua habilidade de escutar as modulações e sutilezas emotivas do outro, muitas vezes imperceptíveis aos olhos empíricos do rosto, mas não aos olhos da alma? Que psicoterapeuta consegue navegar no mundo interno de alguém sem a bússola do feeling? Que psicoterapia existe, de fato, sem a calorosa responsividade acolhedora de uma escuta introspectiva e nutriente que possibilita ao cliente um espaço de sustentação psíquica e interpessoal? Afinal, que psicoterapia é essa que desleixa, em nome da rigidez objetiva e racionalista em excesso, o mais importante de tudo: olhar o outro a quem chamamos de paciente/cliente com amor e consideração? Há de se amar, respeitar, aceitar e tolerar, porém com compreensão, estabilidade e firmeza. Hay que endurecerse pero sin perder la ternura jamás.
O espaço terapêutico por onde permeia a psicoterapia é o instante do encontro entre a subjetividade do terapeuta com a subjetividade do cliente. O bom psicoterapeuta é aquele que propicia, facilita e possibilita tal encontro. A relação psicoterápica, como relação de ajuda, é antes e acima de tudo uma interpessoalidade ativadora do sistema de apego (vide Bowlby) e que assim disponibilizada aciona, por sua vez, no cliente/paciente a capacidade funcional psíquica de buscar e explorar o mundo e a si mesmo, maximizando as potencialidades antes atrofiadas ou hibernantes.
É no diálogo que se faz a escuta psicoterápica. Uma escuta que traspassa os limites da audição e do ouvir, afinal são tantas as comunicações, ao princípio inaudíveis, que flutuam nas entrelinhas discursivas de um setting psicoterápico. É ali que a intimidade se desnuda gradualmente em narrativas impregnadas de sentimentos, sonhos inconsumados, dores, ambiguidades e antagonismos. É ali onde no timbre das emoções mais recônditas e impensadas que emerge uma pessoa antes ocultada pelas inibições e pelo receio de se expor ao desconhecido. Recriar-se nunca é tarefa fácil, pois implica trocar o sofrer repetitivo e familiar da neurose pela dor saudável de simplesmente existir além das cercas. Abrir guarda-roupas e encontrar esqueletos requer tempo, o tempo psicológico da expressividade e da liberação rumo ao crescimento.
Todo bom psicoterapeuta é feito uma árvore que proporciona a sombra e que abriga e nutre. É como um seio que alimenta e um colo que acolhe, protege, sustenta e aquece. É como uma mãe que materna e fortalece seu filho para o vindouro instante em que ela própria se transforma em pai que auxilia o mesmo filho a se lançar no mundo e na vida sem mais necessitar de si. O escutado, assim, toma sua feição com autonomia, autoconfiança e mais autoestima.
Se ser feminino representa aconchego, afeto, intuição, sensibilidade, comunicação sentimental, feeling, introversão, compreensão e reflexão, então todo psicoterapeuta é principalmente feminino. Claro que não somente, pois se ser masculino representa pensar pragmaticamente, instrumentalizar, agir, e objetivar, então todo psicoterapeuta são ambos. É na dualidade da alma que a alma escuta, interage, fala e faz frente psiquicamente à aflição psíquica do outro. Ou como ensina o taoísmo no tocante ao Yin e Yang, é no equilíbrio dinâmico das forças complementares que surge a mudança e o movimento. Não é parado que se cresce. Parado apenas se envelhece.
  Sejamos, pois, noite e dia, claro e escuro, passivo e ativo, quente e frio, verso e anverso, tigre e tigresa. Não somos opostos, somos forte e fragilmente humanos. Sejamos inteiros e nos ofereçamos inteiros ao outro que nos procura, pois somente assim podemos nos encontrar. Como diz o poeta Mário Quintana “o segredo é não cuidar das borboletas e sim cuidar do jardim para que elas venham até você. No final das contas, você vai achar não quem você estava procurando, mas quem estava procurando por você”.
“Ser um homem feminino/ não fere o meu lado masculino” (Pepeu Gomes). Em psicoterapia, assim como na vida, exceto na cama e no espelho do banheiro, sou andrógeno.

(originariamente publicado em 05/06/2012)
Joaquim Cesário de Mello

domingo, 12 de maio de 2013

ESTE PERSONAGEM DRAMÁTICO CHAMADO SER HUMANO


“sou um homem velho e conheci um grande número de preocupações,
mas a maioria delas nunca aconteceu”.
(Mark Twain)                 

           


     No campo da literatura, por exemplo, o drama é definido como "qualquer narrativa no âmbito da prosa literária em que haja conflito ou atrito", Não há drama se não houver conflito ou colisão de forças (externas ou internas aos personagens). Suas raízes e origens datam de cinco séculos antes de Cristo, na Grécia, ou mais precisamente no teatro grego.  Vem de lá seu étimo, que em grego (drama) representa ação.

                Tanto no teatro, na literatura, quanto no cinema, o fenômeno da catarse se faz presente. Catarse – que também vem do grego kátharsis – significa “purificação” ou “purgação”, ou como afirmava Aristóteles, a catarse representa a purificação da alma através de uma evacuação emocional provocada por um drama. Psicologicamente falando experimentar catarse é se libertar de alguma coisa opressora.  E isto é bem utilizado nos ambientes clínicos da psicologia. Se artisticamente um texto dramático pode propiciar catarse, a utilização da simbolização poética em psicoterapia igualmente. A exploração emocional a que está submetido um paciente em psicoterapia abre espaço para explosões emocionais, explosões estas que visam eliminar tensões e angústias provenientes de conflitos internos. É bem verdade que somente “faxinar a alma” (catarse) não resulta em si mesmo na resolução dos conflitos, porém alivia o sofrimento que deles se origina. É necessário, além da purificação emotiva, a elaboração dos mesmos a partir de suas raízes e no presente.
                Mas, voltemos ao drama propriamente dito. Se o drama é definido pelo jogo de forças (conflito) a que se está submetido o sujeito e que lhe gera sofrimento, tormento, angústia e angústia, então se pode dizer que a própria vida humana é um drama, haja visto ser o ser humano um ser de desejos, muitas vezes antagônicos entre eles, bem como também muitas vezes frustrados pela própria realidade da vida. O jagunço Riobaldo em GRANDE SERTÃO VEREDAS, de Guimarães Rosa, já avisava que “viver é perigoso, seu moço”. Mas, perá aí. Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Expliquemos melhor.
           Uma coisa são os dramas que a vida nos proporciona (perdas, frustrações, fracassos, separações, doenças, conflitos e disputas), outra coisa é a nossa capacidade de dramatizar o drama. Lembram daquele adágio popular que diz “fazendo tempestade em copo d´agua”? Pois é, muitas vezes as pessoas reagem exageradamente frente a pouco estímulo. E por que isso ocorre? Por que superdimensionamos pequenos problemas e pequenas questões? Por que somos assim tão intensos e tão aflitivamente dramáticos? Talvez porque, lá no fundo de cada um de nós, nos consideremos especiais e únicos, e por isso o mundo, a vida, as outras pessoas e a realidade sejam apenas cenários e palcos onde realizaremos todos os nossos desejos. Talvez.

                Sim, há algo de teatral na vida humana. Aliás, o próprio termo personalidade advém do grego persona, cujo significado é máscara e que designava a personagem representada pelo atores no teatro. Até em Psicologia Social e Sociologia temos a expressão “atores sociais”. Ao nos construirmos como pessoa vamos construindo uma personalidade que nos distingue como indivíduo de outros indivíduos. Neste sentido nossa personalidade é o somatório de nossas  características psicológicas que determinam nossa individualidade tanto pessoal quanto social. Não nascemos com uma personalidade. Não somos ainda uma pessoa, psicologicamente falando, no principiar de nossa existência. Crescer e maturar, assim, é personalizar o psiquismo. Somos frutos e somos criação. Criamos com o tempo nossa personalidade e nosso personagem. Sim, criamos uma personagem com a qual transitamos pela vida e pelo mundo afora. E muitas vezes acreditamos nela. Como disse Cazuza: “faz parte do meu show”.


                         Não é de hoje que me utilizo dos versos de Fernando Pessoa para expressar parte do que sinto, penso, observo e anoto. Não seria diferente agora. E mais uma vez recorro às suas palavras, com o celebrado poema Tabacaria. Nele Fernando Pessoa, na voz do heterônomo Álvaro de Campos, fala da solidão humana frente a vastidão do universo alheio a ele. Em um monólogo mental o personagem expõe seus pensamentos mais narcisistas (não sou nada./Nunca serei nada./Não posso querer ser nada./À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”). Por meio de metáforas vemos um “eu” só, fracassado e abandonado à própria sorte. Oscilando entre o mundo interior e o mundo exterior, Fernando Pessoa transita seus versos entre o cotidiano e os sonhos grandiosos. E impotente frente à natureza da vida e do Cosmo, o personagem se descreve exatamente como um personagem que se construiu ao longo de sua vida e que se confunde com seu próprio ser.
                               "Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido."

     


     Somos dramáticos porque somos vulneráveis e frágeis. Somos dramáticos não porque temos emoções, mas porque somos emotivos. Porque acreditamos na ilusão de nossa grandiosa importância, até que a Realidade nos inflige e nos revela toda nossa desimportante impotência. Somos dramáticos porque cremos que os deuses nos olham como filhos prediletos, mas o universo é ateu. Somos dramáticos por acharmos que nossa pequenez merece o maior dos livros, a mais sublime das histórias, onde somos o protagonista central de um mundo composto de apenas figurantes. Somos dramáticos porque simplesmente somos humanos, ora.
                          A vida é nosso 
                                   palco


Joaquim Cesário de Mello