Quando fazia curso de catecismo, ou até mesmo nas aulas de
religião na época do colégio, achava curioso quando os padres e os irmãos
leigos contavam as histórias bíblicas sobre
os milagres de seus personagens, assim como os dos Santos da Igreja Católica.
Eram histórias agradáveis de ouvir: Sansão enfraquecido com um corte de cabelo,
Moisés abrindo com um gesto de braços o Mar Vermelho, Jesus Cristo
ressuscitando Lázaro, São Francisco conversando com as cotovias, Santo Antonio
pondo as cabeças dos peixes fora d’água para ouvi-lo... São tantas histórias,
tantas narrativas épicas que me deixava em estado de graça. Contudo, uma
pergunta sempre me ocorria: por que esses eventos não acontecem mais? Por que um
defunto não mais se levanta sob a ordem de uma apelação divina? Por que alguém
como Josué não faz mais o sol ficar parado, ou algum tirano tenha reconsiderado
seus atos após ter uma visão iluminada de Cristo, assim como aconteceu com
Paulo de Tarso no caminho de Damasco. Na minha timidez infantil penso que
cheguei a perguntar sobre isso, mas as respostas foram insuficientes, reticentes que deveriam serem interpretados – diziam os religiosos, com pedantismo – “aos elementos metafóricos do
cristianismo”.
Penso que essa indagação me perseguiu
e ainda me persegue até a minha vida adulta, contudo, não mais na religião, mas
em outras formas de conhecimento. Pude
perceber mitologias, histórias épicas frequentar várias biografias e vários saberes,
mas uma delas, especialmente, chamou-me atenção: a Mitologia da Psicanálise Institucional.
Adianto que sou um admirador e entusiasta da teoria e da prática psicanalítica,
contudo, ao frequentar uma determinada Instituição, participando de um grupo de estudos, pude rememorar esses velhos pensamentos. Aliás, há algo, nessas reuniões, que me fizeram lembrar os antigos encontros
religiosos. misturam-se um certo sectarismo, que se observa em diversas crenças, desde a “mesa branca” à cerimoniosidade católica.
Na penumbra, os integrantes do
grupo, antes de se sentarem, curvaram-se e acenaram com a mão em direção ao “mestre”,
um psicanalista de barbas e óculos freudianos, que balançou positivamente a
cabeça. demorou-se em silencio ao perceber minha presença, o novato. Como numa missa, havia na sala um livro de capa dura, grosso e aberto como uma Bíblia, rodeado de cadeiras onde sentariam os integrantes do grupo -
pessoas de vozes serenas, escrupulosas, com os semblantes de que estavam
prestes a viver ou reviver às cenas de “revelações” dos quadros renascentistas. O
sacerdote freudiano, paradoxalmente, encontrava-se sentado de maneira despojada
numa poltrona, e ouvia as nossas palavras de olhos fechados como se proferíssemos, nao só o nosso entendimento do texto, mas os nossos pecados. Quando alguém
anunciou a minha presença, formalizando-me como novo integrante, o senhor abriu os olhos e com severidade, indagou-me: “tudo bem
contigo?”. Não sabia o que responder, contudo, uma das integrantes quebrou o
silêncio com sorriso agudo e, apontando-me na estante, os livros de interesse da psicanálise, disse-me: “aqueles são os trabalhos d’Ele, e esses são de seus discípulos” –
Freud tinha discípulos, seguidores e, inclusive, um Judas Iscariotes. Jung ao ser
citado, por duas vezes, provocou um mal-estar generalizado com olhares repulsivos,
esconjuros labiais, e invisíveis gestos de sinal-da-cruz.
A reunião, em tom monótono, era entrecortada
pelas palavras “genialidade”, “interpretação”, “resistência”, “inconsciente”, "Sujeito" e “cura”.
Cura? Essa palavra me chamou atenção: Freud analisava seus pacientes e em meses,
poucos meses, estavam todos curados. No início do século XX, suas fascinantes
interpretações, suas reflexões perspicazes navalhavam o mundo dos recalcados e pulverizavam
as neuroses, como uma epidemia similar a da febre amarela, e assim como Osvaldo
Cruz, apesar de empreender verdadeiros milagres em prol da população, criava um
sem número de opositores. Freud foi condenado por mostrar o "mosquito" da
sexualidade infantil... Pois foi em meio a essa discussão que fiz uma longa pergunta:
“Com os avanços da psicanálise,
com todas essas descobertas maravilhosas no decorrer do século XX, suponho que
o índice de cura seja altíssimo e a rapidez na remissão dos sintomas, tenha aumentado”
Não podia cometer tamanha gafe. O
mestre disse em tom solene: “o tratamento dura anos a fio, meu jovem, e não podemos
prometer qualquer cura ou felicidade. Não cometemos a imprudência da promessa de cura”. Sua voz tenebrosa, repreendia a mim e aos outros que, de cabeças baixas, pareciam se envergonhar das minhas palavras. Uma
jovenzinha consolou-me: “Freud é Freud...”. Uma senhora, que parecia dormir,
abriu os olhos como se tivesse ouvido um ruído estranho: “meu jovem, o mundo
não é mais ingênuo como nos tempos freudianos”.
Frustrado, recolhi minhas ideias
e as juntei nas minhas recordações infantis onde os milagres só aconteciam no
passado.
Guilherme Saraiva (colaborador - LiteralMente)